Originalmente publicado no livro "85 letras e um disparo"
Caminhos cruzados
Verão de 1994.
Três horas da tarde.
A partida havia
parado por conta do calor de 42º que castigava as cabeças dos 22 jogadores.
Kauê saiu
calmamente do campo, conversando com Tico, zagueiro do seu time.
Firmino, jovem
de 26 anos que até então assistia a tudo, abordou Kauê:
- E aí Negão,
posso conversar com a sua pessoa? – Perguntou Firmino.
- Pode não,
deve. Num sou nem uma estrela pra você perguntar isso – Responde Kauê.
O zagueiro
cumprimentou os dois e foi embora. Firmino olhou firme nos olhos de Kauê e
disse:
- Matei, tô
roubando, cheirando e bebendo. E aí, que tu tem pra mim dizer?
Kauê tentou
raciocinar: como assim, por que, o que eu falo?
Acabou por
responder:
- Firmino, que
história é essa rapá, tá louco é?
- Que louco o
quê Negão, foi o que aprendi a fazer.
- Porra
Firmino, tanta coisa pra aprender e você foi aprender logo isso?
Kauê e Firmino
cresceram juntos no Morro do Culhão, Rio de Janeiro. Os dois têm a mesma idade.
Presenciaram
muitas coisas junto, entre elas, o destino das pessoas que entraram na vida do
crime através do tráfico de armas e drogas. O pacto que fizeram na adolescência
era de que nenhum deles iria se envolver com qualquer tipo de coisa que levasse
ao caminho do mal. É claro que não viraram santo, mas seguiram à risca este
pacto.
Aos dezessete
anos Kauê começou a compor sambas enredos para alguns blocos carnavalescos. O
primeiro enredo de sua autoria foi o escolhido por uma escola. Nem precisou
distribuir a letra xerocada e muito menos lotar um ônibus para torcerem pro seu
samba no dia da seleção, como muitos faziam.
A partir daí,
arriscou algumas poesias, mas não tinha o tal veio literário, sendo assim,
ficou só nos enredos mesmo.
Firmino deixava
a vida o levar.
- Tô trampando,
tô ajudando no barraco, minha cerveja é eu que pago, então o resto é que se
foda, tá ligado?
Resumia assim a
sua vida.
O início da
juventude dos dois, fora um momento indescritível, prazeroso até demais para
quem viveu cercado de miséria e teve que dormir no chão para não ter o perigo
de ser vítima de bala perdida.
Nos finais de
semana os dois iam ao baile e à praia. Dinheiro quase não tinham, mas viviam
cercados de mulheres e amigos.
Kauê costumava
comparar a vida deles como a de um artista malandro:
- Nós somos
igual a um poeta de nome Bocage; o cara trepou, bebeu, comeu e fodeu sem ter
dinheiro, como ele mesmo dizia quando era vivo. E dizem que o malandro ainda
pediu pra escrever isso na lápide dele, há, há, há... Vê se pode?
Kauê até
conseguiu convencer Firmino de fazer um curso qualquer pra ter uma segurança,
um diploma debaixo do braço pra quando precisasse. Mas, logo na primeira semana
de aula, Firmino se sentia excluído da turma. Não entendia porra nenhuma do que
a instrutora dizia e, nesta situação de iniciante, só havia ele. E pra piorar,
a danada da professora era um mulherão. Enquanto ela explicava Firmino ficava
contemplando aquelas pernas, imaginando os dois sozinhos na sala e ele a
seduzindo de tal forma que a aula começou a ser prática: ela pegava em seu
mouse e explicava detalhe por detalhe daquele instrumento essencial para o bom
desempenho do computador que, naquele instante era o teu corpo. E quando ele
começava a introduzir seu mouse naquela tela de prazeres, a professora o
despertou do devaneio:
- Firmino, não
está me ouvindo não?
Acabou largando
o curso:
- Não dá não
Negão, essa merda de linguagem HTML e os escambaus não é pra mim, deixa pros
boy. Meu negócio é outro.
E assim os dois
continuaram vivendo; serviço, futebol, mulheres, bebidas e samba. Mas chegou o
dia em que Firmino
perdeu o emprego. Passaram-se dois anos e meio e nada de um serviço, só mesmo
os bicos de segurança e servente de pedreiro.
Já estava
enjoado daquela vida monótona. Nada mais acontecia. Ele precisava de uma nova
sensação, algo pra levantar a sua moral que, como dizem na comunidade: “Homem
sem moral é um cachorro fuçando lixo na madrugada”.
E era assim que
Firmino se sentia.
Começou a se
isolar. Tanto que se afastou das mulheres e das amizades há muito cultivadas.
Foi aí que o
crime agiu. Firmino se envolveu com os traficantes. Esses deram a ele o que
estava precisando: carinho, proteção e divertimento.
Era agora um
dos funcionários da boca-de-fumo que atendia no asfalto, onde os clientes eram
universitários, filhos de gente famosa que vive na frente dos holofotes.
Agora sim,
voltara a viver. Não estava nem aí com o seu destino, só queria saber do agora:
- O amanhã que
se dane! – Dizia ele.
Só que o crime
não se resumia apenas naquilo. Por isso teve que partir para os assaltos. Num
desses, ele matou um funcionário de uma mansão no centro do Rio. Aí veio a sua
decadência. Começou a cheirar cocaína e a matar sem piedade. E depois de alguns
meses sem se verem, Kauê e Firmino conversam no escadão do campo de futebol:
- É por isso
que tu sumiu né rapá? – Disse Kauê.
- Ô Negão, bóra
ali tomar uma breja.
Caminharam
calados até o boteco mais próximo. Lá beberam cerveja e jogaram três partidas
de sinuca, todas ganhas por Kauê.
- Porra
Firmino, nem no taco você é o mesmo hein rapá...
Conversaram
durante toda a tarde. Kauê sempre dando conselhos e apontando outros caminhos
que, ele mesmo sabia não chamar a atenção do amigo.
Firmino
levantou. Eram cinco horas da tarde e ele precisava ir. Tinha uma encomenda pra
buscar lá no Morro do Sovaco. Pagou a conta e agradeceu a companhia do amigo,
precisava desabafar com alguém e, mesmo tendo quebrado o pacto feito na
adolescência, ele estava ali, disposto a ouvi-lo. Só ouvir mesmo, pois como
Firmino dissera, agora é tarde, não tinha como abandonar o crime. Se saísse os
caras matavam e se ficasse tinha de matar. Agora se bobear é “CC”, como dizem
os veteranos do crime: “É caixão ou cadeia parceiro”.
Kauê ficou
vendo o amigo caminhar até desaparecer nos meios dos barracos que cercavam o
morro.
Uma lágrima
escorreu pelo seu rosto. Já sabia o futuro do companheiro. Amaldiçoou o crime e
às verdadeiras pessoas que ganham com ele.
Respirou fundo
e, fazendo um barulho estranho cuspiu uma bola verde de catarro. Saiu
caminhando no lado oposto em que o amigo seguira. Estava pensando em ir na sua
mãe de santo e pedir uma saída para a vida de Firmino.
Os dias
passavam normalmente na vida daquelas dezenas de famílias que habitavam o Morro
do Culhão.
Kauê via o
amigo regularmente. Firmino não perdera o seu lado solidário, principalmente
com Kauê que ele apelidara de Negão na sua adolescência. Sempre que eles se
encontravam, Firmino oferecia ajuda:
- E aí Negão,
tá tudo certo mermo, num tá precisando de uma ajuda? Cê tá ligado que pode
contar comigo em tudo né?
Ás vezes
explicava:
- Você é meu irmão
cara, tá ligado? Nós foi criado tudo junto nesse morro aí ó, conhecemos tudo
aqui melhor do que ninguém. Se lembra quando nós ía roubar cana lá na plantação
da família Mendes?
No dia do jogo
do Flamengo e Fluminense, Kauê subiu em cima da casa pra girar a antena,
enquanto procurava a melhor posição, escutou a voz do Firmino:
- Salve irmão,
qué uma força aí?
- Valeu
cumpádi, pode deixar que eu ajeito sozinho, essas porras de televisão são foda.
- Vou ti dar
uma TV com parabólica no seu aniversário, pode anotar aí.
- Olha que eu
cobro hein?
- Tu num vai
nem precisar, antes mesmo de você cobrar ela já vai estar na sua mão.
- E você, não
vai assistir o jogo não?
- Vou assistir
lá no bar do Taquara...
- Assiste aqui
pô...
- Num vai dar,
vou assistir lá por que tenho que resolver uma fita também.
- Então beleza.
Firmino saiu.
Kauê ajeitou a antena e desceu.
O jogo começou:
drible, xingos e vaias. Não saiu disso.
Kauê escutou
tiros, mas nem se preocupou, isso era normal, ainda mais em dia de jogo. Não
sabia por quê mais lembrou como Firmino estava há poucos minutos; nervoso,
agitado, inquieto...
Fim do primeiro
tempo: 0 x 0.
Kauê aproveitou
o intervalo para comprar cerveja. Quando ía subindo para o bar do Taquara, viu
a namorada do Firmino correndo, chorando e gritando para ele:
- Mataram
Firmino, mataram Firmino...
Kauê não quis
entender:
- Tá doida
mulher, para de brincadeira, não tem o que fazer não é?
Ela se perdeu
em gritos:
- Num tô
brincando não, mataram ele, mataram Firmino...
- Aonde?
- Lá no bar do
Taquara...
Ele correu pra
conferir. Chegando viu o corpo do amigo todo ensangüentado. O comentário que
ouviu foi:
- Só no peito
deram seis balaços.
No velório Kauê
lembra dos momentos em que estiveram juntos. Momentos iguais àqueles dias em
que mijavam num pote, amarravam uma linha nele e colocavam do outro lado da
viela. Quando alguém passava eles levantavam a linha e o líquido do pote voava
certeiro na calça do infeliz.
Lembrou também
do dia em que perderam a virgindade, tinham 14 anos. Passaram a semana juntando
alumínio. Com o dinheiro que receberam foram na Praça do Galo e convenceram uma
prostituta.
Neste momento
Kauê dá um sorriso lembrando do amigo tirando um sarro da sua cara por que
assim que a prostituta abaixou a calcinha ele gozou. Firmino sempre caçoava do
amigo:
- Tu é foda
mermo aí, só foi a mulher mostrar aquele negócio cabeludo, que tu já se
gozou... ah, ah, ah....
Kauê é
despertado por uma mulher que chega desesperada e pede para segurar a criança.
Ele percebe as semelhanças entre o bebê e Firmino.
A mulher vai
até o caixão, levanta o véu e começa a falar com o defunto:
- Firmino, seu
desgraçado, não me deixa... ingrato, olha aqui... sou eu, você não tem o
direito de me deixar...
Na medida em
que gritava, as lágrimas escorriam e caíam na face dura e fria de Firmino,
defunto indiferente a tudo e a todos.
Kauê não
conseguiu segurar as lágrimas que brotaram de seus olhos.
Sacolinha