Esse que segue abaixo foi o meu primeiro conto, escrito em 2002 quando eu ainda estava iniciando na escrita. "Um dia comum" foi premiado no Concurso Artez de Literatura, e em 2004 os direitos autorais dele foram adquiridos pela editora Casa Amarela e publicado na revista Caros Amigos Literatura Marginal - Ato III.
Um dia comum
Terça-feira, três horas da matina.
O relógio desperta. Tércio se levanta, cala o barulho estridente e sai cambaleando pela cozinha bêbado de sono, antevendo uma nova jornada de sofrimento.
Vai começar tudo de novo.
São três horas e trinta e cinco, faltam apenas cinco minutos para o ônibus passar rumo à estação de trem de Suzano. Tércio olha em cima da mesa e vê o copo de café lhe esperando; como num passe de mágica engole o líquido preto que sobrou do dia anterior.
Com muita pressa coloca a mochila nas costas e vai até o quarto onde dorme juntamente com seus irmãos e sua mãe. Pede a benção para a mesma e afaga as cabeças dos irmãos, cabeças onde trafegam sonhos do mundo mágico do Beto Carrero.
Na seqüência faz o sinal da cruz, abre a porta e se lança de encontro ao seu destino.
Três e trinta e sete. Pisando no escuro da viela de terra batida, Tércio só consegue naquele quase breu, divisar a fúria faminta de alguns vira-latas lutando com os sacos de lixo que se acumulam na noite fétida.
Sobe a rua da sua casa rapidamente e depois desce a rua da escola Filomena Valadares, que desemboca na avenida Fittipaldi.
Na cauda da noite, ele observa o ônibus passando. O motorista lhe conhece, Tércio levanta as mãos acenando para que a salvação o veja, pois não pode perder essa condução de jeito nenhum... Opa, parou.
Ao entrar no ônibus da Viação Sujeira, ele deseja um bom dia ao motorista, ao cobrador e a alguns passageiros conhecidos.
Três e cinqüenta e cinco. A fila pra passar na catraca da CPTM está enorme devido à falta de troco. Os passageiros reclamam da demora porque o maquinista não espera.
Na vez do Tércio a mulher do caixa resmunga, por ele ter pago a passagem só com moedas de dez centavos. Ele não se contém:
- Tem dia que vocês estão fazendo campanha pra conseguir moeda que usam até bala pra tomar moeda da criançada, e sempre que eu pago com moeda vocês reclamam. E, além disso, vocês não devem escolher se é moeda ou papel, o importante é que o dinheiro está aí, um e cinqüenta e cinco.
Simplesmente a mulher fecha a cara e de longe os guardas lhe encaram com olhares ameaçadores.
As três e cinqüenta e nove, o guerreiro sobe a escada da passarela que, de tão velha, está enferrujada e até balança com o corre-corre do pessoal que vai embarcar no trem.
Com três minutos de atraso a Maria fumaça parte da estação de Suzano, deixando o município para trás.
Dentro do vagão nada foge à rotina de sempre. Mulheres falam do último capítulo da novela, homens discutem futebol, alguns jogam baralho, enquanto outros limpam os bancos sujos de pó, serve qualquer coisa; papel higiênico, guardanapo, flanela, toalha de rosto, etc.
Neste vagão também se agrupam pessoas que formam a ADF, (Academia da fofoca), onde o grupo se reúne para falar desde assuntos mesquinhos, até assuntos polêmicos, em geral da vida alheia.
O trem sacoleja ao ritmo dos barulhos nos trilhos. Neste momento Tércio está com os olhos fixados na vasta escuridão de fora do trem. Não olha pra dentro porque já está habituado a ver rostos que traduzem a pobreza, e cabeças pendendo de sono no ombro do passageiro ao lado.
Tércio que não só tem o perfil, como também é morador de periferia, saiu da casa da sua avó, em Jundiapeba onde morava, para tomar conta de seus irmãos e da sua mãe. Desde que seu padrasto desaparecera, ele ficou sendo o chefe da casa onde seus irmãos têm entre onze e doze anos, e a sua mãe, que com quarenta e um anos de idade, não consegue arrumar um emprego, se entregando assim, para os bicos em casa de madame nos finais de semana.
Quatro e vinte e cinco; o maquinista abre as portas para a sofrida baldeação. A correria é total. Após todos se acomodarem, o precoce chefe de família sai do velho trem e passa para o tal de “Expresso Leste”, mais conhecido como trem espanhol, que as quatro e meia sai da estação, deixando o guerreiro no seu destino às quatro e quarenta.
Tércio agradece á Deus pelo jacaré de ferro não ter quebrado, como é de praxe.
Lá fora o patrão lhe espera. Ele desce a escadaria do metrô Itaquera, entra no carro e o “bom dia” soa automático nos ouvidos.
A ‘porschet’ está na cintura, a garganta afiada. No primeiro ponto, Tércio que ganhara o apelido de Murphy, por ser muito parecido com o ator americano Eddie Murphy, grita o itinerário da linha de lotação em que trabalha:
- Simbora Iguatemi aí ó, Cidade Tiradentes, lugar sentado, quem vai?
A esta hora da manhã, sol nascendo, primeira viagem; entra apenas um passageiro, é um dos frentistas do posto de gasolina da estrada Jacú-pêssego.
Cinco da manhã; a lotação em que Tércio trabalha chega no ponto final onde estão apenas os carros, os motoristas e cobradores estão dentro da padaria, tomando um cafezinho.
Cinco horas e quinze minutos; a fila começa; as kombis, vans, sprinters e microônibus são puxados para frente pelos cobradores; quando o carro enche, o motorista vem.
Duas horas da tarde. Onze viagens, Murphy cumpriu sua missão. Agora vai para o segundo tempo: Pegar novamente o trem da tristeza que neste horário já vem lotado da estação do Brás.
Ao entrar no espanhol, Tércio faz um giro com a cabeça para ver se encontra algum conhecido: homem, mulher, senhor, senhora, o que importa é passar o tempo. Já que não reconheceu ninguém, abre a mochila e pega o livro “Quarto de despejo – Diário de uma favelada, de Maria Carolina de Jesus”. Abriu onde estava a marca-página, na folha de número quarenta e cinco. Ele agora viaja dentro de outra viagem.
Depois de toda a monotonia, o caixão de ferro chega em Suzano. O guerreiro fecha o livro na página setenta e seis.
Agora se prepara para a caminhada de quarenta minutos até a sua casa.
No meio do caminho uma voz conhecida:
- E aí Murphy!
Ele que nesse momento folheava um fanzine tirou a atenção do mesmo. Olhando na direção de onde havia surgido o grito, avistou com as mãos cobrindo-lhes os olhos, uma sombra em cima da bicicleta. O sol estava estalando as folhas secas. Na bicicleta estava o seu camarada de longa data, o Rogerinho. Tércio se aproxima e inicia o diálogo:
- E aí parceiro, está indo trampá?
Depois de uma breve conversa, Rogerinho sai pedalando e Tércio sai andando.
Já na rua da escola, Murphy se encontra com seus camaradas da EDD (Esquina Da Diretoria), uns jovens com idades entre dezessete e vinte e um anos, que se reúnem toda sexta e sábado à noite numa esquina do Jardim Varan e envolta de uma fogueira ficam falando dos fatos que ocorreram na semana.
Entrando em casa ele ouve a voz do vizinho embriagado que discute com a esposa. Neste momento um certo desgosto toma conta do semblante de Tércio, apesar desta cena ser constante nesta vizinhança.
Os seus irmãos estão na escola e sua mãe foi procurar emprego.
Ele troca de roupa; o estômago perturba, quer algo para cobrir-se. Tércio abre a geladeira; só tem garrafa d’água e um pé de alface. Ele pega algumas folhas da verdura, picota a moda da casa e faz uma salada que só quem é pobre sabe fazer.
O arroz e o feijão estão no prato. Ele agradece á Deus e começa comer.
De dentro e casa ouve-se alguém chamar. Vai atender. Sai pra fora e olha pra cima do barranco. O sol forte reluz no seu rosto. A única coisa que consegue enxergar é algo negro e pequeno. Identificou pela voz que gritava:
- Ô Murphy, chega aí.
Essa voz é do Rafael, um menino de dez anos que vive dizendo aos outros que quando crescer vai ser igual ao Tércio: Perueiro, ter uma mina firmeza, cantar rap e se dedicar a ajudar quem precisasse, (a inspiração é de quem está mais perto).
Sempre que Tércio conversa esse assunto com Rafael, ele diz ao menino:
- Você pode ser igual a mim, mas não precisa fazer necessariamente o que eu faço, e sim algo melhor, está me entendendo?
Ele chama Rafael pra descer e o mesmo diz:
- Não vai dar mano, é que eu estava empinando pipa lá em cima da minha laje e vi você chegando, aí amarrei a linha no ferro da coluna e deixei a pipa no alto sozinha. Vim entregar esse livro e pegar outro.
Alegre e empolgado, Murphy entra e pega em cima da cômoda o livro “Nó na garganta da escritora Mirna Pinsky”, uma obra infantil que tem como personagem principal uma menina negra e pobre, que em busca de um lugar ao sol encontra a sua verdadeira identidade.
Rafael entrega o livro que já leu e sai abraçado com o outro dizendo:
- Depois que eu ler eu trago de volta.
Novamente dentro de casa o guerreiro olha em cima da mesa; a comida lhe espera, está fria, mas dá pra engolir.
Quatro e vinte e cinco da tarde. As mãos lhe doem devido ao esforço que fez para tirar pasta de dente do tubo, que agora, esquecida no canto da calçada de terra, aguarda o caminhão de lixo.
Neste momento Tércio irá fazer o que mais adora. Senta à sua escrivaninha, (mesa da cozinha) e se concentra. Uma nova letra de rap começa á surgir no caderno velho de capa rabiscada que ele usou na escola o ano passado. Haja tinta de caneta.
Cinco e quinze. Murphy toma banho e vai para o curso, que é ás sete da noite, mas vai no sistema “táxi-sola”.
Chega no centro de Suzano ás seis e quarenta e cinco. Na porta do curso conversa com uns colegas. Quinze minutos depois, estão entrando na sala. Agora Tércio se concentra apenas na aula. O professor não quer saber se o aluno aprende ou não, ele está ganhando do mesmo jeito. O pior é que Tércio é o único da sala que ganhou o curso totalmente de graça, num sorteio que teve quando ele cursava o terceiro colegial. Aí é que eles não querem saber mesmo.
Dez horas. Este é o horário que Murphy sai do curso. A caminhada até a estação é de dez minutos. No meio do caminho a polícia implica com ele. Lá no morro já estão lhe chamando de breque da rota.
Estão em quatro; uma mulher e três homens. O cabeça do grupo começa o interrogatório desnecessário:
- Ô vagabundo, isso é hora de estar na rua? Cadê o bagulho? Onde você estava? Está indo pra onde? O que você faz?
Nisso já fazem a revista. Um dos policiais pede para Tércio abaixar os braços e olhar para ele. Ao virar o guerreiro vê alguns boys e patricinhas que estão saindo de uma faculdade que tem ali no centro; alguns dão risadas, outros fazem comentários.
Neste momento as pernas de Murphy praticam a dança do medo. Ele olha dentro da viatura e vê um policial que está com a arma apontada em sua direção. A policial lhe encara, está esperando Tércio olhar feio, dar motivo para ela começar o seu sermão de coitada:
- O que que você está olhando porra? Só porque eu sou mulher você acha que eu não dou conta; posso te pegar sozinha que faço o serviço. Ou senão faço você amanhecer num terreno baldio com a boca na terra.
O guerreiro não diz nada.
Depois de uma grande canseira eles liberam Tércio, mas deixam um recado:
- Se a gente ver você por aqui outra vez, o bicho vai pegar. Sai correndo seu preto do caralho.
A vítima saiu dando passos apressados e perguntando para si mesma:
- Será que estas apostilhas e esta camisa com o slogan do local onde faço curso, não significam nada pra eles?
Em pensamento agradece as pessoas que passaram no local durante a cena; sabe que se não passasse ninguém ali, com certeza neste momento estaria dentro da viatura ou no meio do mato levando borrachadas.
Olha no relógio, os ponteiros indicam dez e trinta e três. O ônibus que passa próximo a sua casa já foi, o outro é só daqui a quarenta e sete minutos; se ele for a pé chegará primeiro.
Dez e quarenta e cinco. Os passos de Murphy são rápidos, está olhando para frente, pra trás e para os lados.
Outra viatura está passando por ele, os donos da noite o encaram de cima a baixo, mas saem em disparada. Ou perceberam que Tércio estava vindo do estudo, ou estavam com assuntos mais importantes.
Faltando cinco minutos para Murphy chegar em casa, ele passa na frente de um boteco de luxo que tem ali no morro, e... Adivinha quem está lá?
Exato. A viatura que o encarou há alguns instantes. Estão do lado de fora, atrás da viatura, conversando com o dono do bar, que em seguida passa algo para as mãos deles; olham para Tércio, e esse finge que não viu nada e acelera o passo.
Onze e dez da noite. Agora o guerreiro está descendo a escada de terra da sua casa, olha pra cima e vê a viatura passando. Entra em casa e tranca a porta. Sua mãe dorme depois de um longo dia à procura de emprego. Seus irmãos fazem o mesmo. Murphy coloca os materiais em cima da cômoda próximo aos livros. Troca de roupa e escova os dentes. Coloca para despertar às três horas da manhã, apaga as luzes, deita no depósito de cansaço e entra em contato com Deus:
“Obrigado meu Deus. Muito obrigado pelo pão, pela casa e pelo trabalho. Obrigado por minha família, minha namorada, por perdoar os meus pecados, pela saúde e pelo sorriso dos meus irmãos. Pela escrita, o papel, a caneta e a consciência. Muito obrigado.
Eu gostaria de pedir ao senhor, mais um dia, mais uma chance, mas que seja feita primeiro a sua vontade.
Deus, apenas mais um dia, um dia comum”.
Sacolinha
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