Geração da utopia e o
sistema de transporte público
Os
acontecimentos dos últimos dias têm me dado muita esperança. Eu já imaginava
como nossos filhos nos teriam daqui há alguns anos. Talvez seríamos conhecidos
como a geração que cultuou a bunda. Felizmente, parece que a nomenclatura será
menos vergonhosa. Creio que não chegaremos a ser utópicos como a geração que
viveu a Ditadura Militar nas décadas de 1960 e 1970, até porque nossos sonhos,
as lutas e as conquistas estão mais próximos da realidade do que naquela época.
Isso tudo porque tivemos os jovens das duas décadas citadas que lutaram por
sonhos que estamos vivendo hoje.
O
estopim dessas manifestações me chama a atenção.
Atualmente
as únicas pessoas que ganham com o transporte público da cidade de São Paulo
são os empresários. Antes o leque era maior, já que envolvia perueiros,
traficantes, policiais e alguns líderes do sindicato dos motoristas e
cobradores de ônibus.
Os
perueiros não pagavam impostos e nem prestavam contas dos seus ganhos. Abriam
linhas de transportes sem nenhuma fiscalização. Traficantes eram pagos para
proteger essas linhas, do olho grande de policiais militares, que viam nos
lotações um meio de complementar a renda, cobrando pedágio dos perueiros,
tomando de assalto as linhas clandestinas e até rodando por elas com suas
peruas compradas com o dinheiro da corrupção.
Com
a queda na arrecadação, os donos das empresas de ônibus cobravam soluções da
prefeitura. Como a solução por parte do poder público era somente paliativa, os
empresários resolveram agir. Oficialmente fizeram campanhas contras os
lotações, exibindo, atrás dos ônibus, mensagens agressivas contra os perueiros.
Por baixo dos panos pagavam alguns líderes do sindicato dos motoristas e
cobradores para que promovessem greve e queima de ônibus. Com isso tinham
argumentos para pedir o aumento da passagem e dos subsídios do governo
municipal, além, é claro, de receberem ônibus novinhos das empresas
seguradoras.
Hoje,
muitos desses perueiros, policiais e sindicalistas, são donos ou tem parte nas empresas de
ônibus.
Em
2010 lancei pela editora Nankin o livro “Estação Terminal” um romance ficção
que tem como pano de fundo a história do transporte na cidade de São Paulo, com
enfoque no descaso das várias gestões da prefeitura, que fez com que crescesse
o transporte clandestino e alternativo da cidade de São Paulo.
Selecionei
dois trechos deste romance que demonstram um pouco do que falei até aqui.
Meu
embasamento para a escrita do livro em questão foram os 12 anos que trabalhei
como cobrador de lotação na Zona Leste de São Paulo. E é bom ressaltar que o
livro foi usado pelo Ministério Público da cidade e por alguns investigadores
para dar solução a muitos casos arquivados, que envolvia acidentes,
assassinatos e corrupção. Mesmo a obra sendo ficção.
Trecho 1.
...
Em se tratando de movimento, a linha Inácio Monteiro-Terminal Itaquera era uma
das mais generosas do Estado de São Paulo. Com sessenta carros rodando, cada um
deles carregava cerca de duzentos e cinquenta passageiros de manhã e mais
trezentos na parte da tarde e noite. E ainda havia a linha de ônibus com doze
coletivos que andavam lotados pra cima e pra baixo.
O
bairro Inácio Monteiro era parecido com a Cidade Tiradentes. Foi ocupado
irregularmente na década 1970 e cresceu tanto que os governos tiveram que
investir. O que mais trouxe dignidade para aquelas pessoas foram as políticas
habitacionais, em sua maioria resumidas nos famosos predinhos do CDHU.
Como
a oferta de emprego no entorno era ínfima, noventa por cento das pessoas que
trabalhavam tinham seus empregos no centro de São Paulo. Por isso a grande
quantidade de passageiros.
Com
toda essa gente pra ser carregada e tanto perueiro pra carregar, a linha
movimentava uma grana violenta. Todo mundo ali ganhava bem: cobrador,
motorista, dono da perua, fiscal, e os donos da linha, principalmente eles.
Matracão
e Dinailton eram os proprietários, e moradores do bairro que levava o mesmo
nome da linha.
Em
muitas ocasiões tiveram que pedir proteção ao tráfico, porque várias vezes
tentaram tomar a linha. Eles não eram envolvidos com o crime e nem arma tinham em casa. Na verdade eram
dois sortudos que acertaram em cheio quando, em 1994, decidiram abrir a linha.
Só que ela foi crescendo e eles começaram a ficar tensos. Qualquer sinal de
alerta abriam o caixa da linha para pagar aos traficantes e ter uma proteção. E
a grana não era pouca. Tanto que, para os traficantes faturarem aquele
dinheiro, tinham que vender drogas durante um mês. Com isso dá pra ter ideia do
tamanho da linha e também do tamanho do medo de Matracão e Dinailton.
Esses
dois adquiriram o hábito de andar de cara fechada, gingando e falando na gíria,
para fingirem que eram barra pesada. Mas de bobo não tinham nada. A linha se
sustentava de sessenta carros não era à toa. Desde o ano de 1997 eles investiam
a grana que ganhavam. Das vagas existentes ali, quarenta foram vendidas e as
outras vinte estavam alugadas. O dinheiro dividido meio a meio foi usado na
compra de casas, sítios e apartamentos, além de carros, pagamentos dos estudos
dos filhos e ações nas bolsas. Todo esse empreendedorismo era porque eles
sabiam que mais dia menos dia algum costa-quente tomaria a linha e daria um pé
na bunda deles. E o pior é que esse dia chegou.
SACOLINHA, Ademiro Alves. Estação Terminal. São Paulo,
Nankin, 2010, p. 114-116.
Trecho 2.
Arilson
andava radiante. Estava com o rabo cheio de dinheiro e não sabia nem mais em
que investir. Tinha doze apartamentos, seis casas na praia, um iate, dois jet-sky, três sítios, uma empresa de
segurança e uma escola particular, ambas usadas de fachada para a lavagem do
dinheiro sujo da lotação.
Estava
negociando a compra de dois helicópteros e um pequeno avião Legacy.
Em
que mais investir?
Se
fosse esperto, investiria em si mesmo. Blindagem pessoal era o que precisava.
Caso a Receita Federal procurasse saber de onde ele tirava dinheiro para ter um
rendimento exorbitante em apenas dez anos, com certeza, seria preso.
O
investimento em proteção não precisava ir longe, se fizesse uma lista de
prioridades, assassinar o seu parceiro seria a primeira tarefa.
SACOLINHA, Ademiro Alves. Estação Terminal. São Paulo,
Nankin, 2010, p. 130