Joelho
ralado, tubaína e amor platônico
Ou
Ser
menino na periferia de SP das décadas de 80 e 90
Era uma vez a periferia de São Paulo nas duas
últimas décadas do século XX. Não,
espera! Vamos começar de leve pra não perder o leitor no primeiro parágrafo
desta crônica.
Neste momento estou escrevendo ao som da música “Era
uma vez” na voz de Kell Smith, uma das músicas mais tocadas no fim do inverno e
começo da primavera de 2017. A música parece que se baseou naquela frase da
Clarice Lispector “Queria voltar a
ser criança, porque os joelhos ralados curam bem mais rápido que os coraçoes
partidos”.
Confesso que a música é muito dolorida. Tão
dolorida que chega a ser bonita de arrepiar. E em meu caso, menino pobre da
Zona Leste de SP, suscita lembranças de uma vivência pesada nas décadas de 80 e
90. Aqui não irei falar de tiro, drogas e outras violências físicas, que apesar
dos pesares esses fatores ainda eram possíveis de se esquivar.
Quero falar de violência
emocional, que é o assunto da música. É que em nosso caso, em sua maioria, sem
a figura paterna, pobre, de bairro carente e criado em um sistema machista, a
situação era bem pior do que um joelho ralado. Primeiro as lágrimas eram
proibidas em qualquer caso: machucado, surra da mãe ou da avó, briga na rua e
na escola, amor platônico e etc. Incrível que esta imposição quase natural nos
impedia o choro até quando estávamos sozinhos. Parecia que estávamos sendo
vigiados. Eu mesmo tentava mas não conseguia. O choro não passava da garganta,
parecia que havia um nó ali e eu era obrigado a fazer aquilo que a minha mãe
dizia: “Engole o choro”. Um pouco sobre isso eu falo em meu romance
infanto-juvenil quando o personagem Artur apanha da mãe que não satisfeita da
surra dada em seu filho ainda pergunta: “Que foi, quem vê pensa que arranquei
as tripas”.
Antes as tripas fossem
arrancadas. Doeria muito menos do que toda aquela violência emocional, pois
muitas vezes aquelas peripécias que causavam a surra eram resultados da falta
de uma referência masculina para dar instruções e indicar caminhos. Aprendíamos
tudo por nossa conta, na raça, na brutalidade mesmo. Eu lembro da primeira vez
em que meu corpo e minha mente deram sinal de que eu estava virando homem (e
aqui, esse “virando homem” tem mesmo aquele sentido machista). Antes as meninas
passavam por mim e eu nem aí. Inclusive não conseguia entender por que meus
amigos maiores sempre viravam o pescoço. Não me apetecia. Aí, eu com 12 anos,
comecei a reparar no corpo delas. E em um dia, tomando banho, comecei a me
tocar. Fiquei assustado com meu orgão sexual reagindo assustadoramente. Voltei
do transe com a mão pesada da minha avó batendo na porta do banheiro: “Vai
morar aí, moleque?”.
Rapidinho perdi a ereção. Fiquei
achando que estava sendo vigiado e me senti culpado. Mas passei o dia sentindo
que faltava alguma coisa. No fim da tarde, quando cheguei da escola me vi
escondido num canto da casa com uma revistinha de mulher pelada que peguei
sorrateiramente debaixo do colchão da cama do meu tio. Saiu de mim aquilo que
estava me deixando agitado e inquieto o dia todo. E somente depois disso é que
sosseguei. Naquele dia, apenas. Porque durante uma semana eu fiquei com o corpo
quente e tendo ereção o tempo todo. Achei que tudo aquilo era feio e
vergonhoso. Faltou alguém pra me dizer que não, que eu podia aproveitar, que
era normal e pronto. Contei meu caso de puberdade que perto de outros até foi
bem tranquilo. Eu tive amigos que foram levados para puteiros e obrigados a
transar com mulheres de 30, 35 anos. Tinham que provar para o pai, o tio ou
para o irmão mais velho que eles gostavam daquilo e que não eram “viados”.
Alguns conseguiam por estar ou ter passado da puberdade. E os outros que ainda
não haviam despertados? Era o fim do mundo. Tínhamos a necessidade de
demonstrar macheza o tempo todo: em casa, na rua, no futebol, na bolinha de
gude, nos pipas... Relação com as meninas só se estivesse “catando” elas. Do contrário
alguém falava que você estava querendo brincar de boneca. E então você era
execrado: Seu bicha! Viado do caralho!
Isso era o de menos. Às vezes
você era surrado ou tinha que pagar tubaína pra rua inteira.
Uma vez descobriram que eu
estava apaixonado por uma menina da igreja evangélica que tinha em minha rua.
Aí ficaram me encorajando: “Vai lá, Mirão! Cê é homem ou não, porra? Chega
chegando, caralho!
Eu não queria estragar aquilo
que eu sentia, de tão lindo que era. E nem queria assustar a menina que, talvez
nem soubesse do meu amor platônico por ela. Mas me intimidaram. Foi aí que eu
perdi a oportunidade de ficar calado. Cheguei chegando! E afastei ela de mim.
Cumpri com a missão de demonstrar que eu era homem, e perdi a chance de viver o
meu primeiro amor adolescente. Ninguém merece essas violações. Ser criança e
adolescente, na intensidade, é um direito humano. Mas nós, que vivemos nesta
época, e eu tenho propriedade pra falar, tivemos esses direitos violados em
todos os momentos.
Éramos jogados na selva de
pedra, pelados, sem dinheiro, sem proteção e com um corredor cheio de
brutamontes armados de porretes pra dar em seu corpo durante a passagem.
Eu passei por este corredor. Sou
um herói. Sobrevivi, mas confesso que trago comigo algumas marcas. Chorar de
verdade até hoje eu não consegui, nem mesmo quando perdi o meu irmão assassinado.
E ele merecia as minhas lágrimas. O abraço em minha mãe e um “Eu te amo”
demorou pra sair. E a desconfiança no mundo me faz ser vigilante o tempo todo.
Por isso prefiro dizer que,
apesar das alegrias e da inocência, prefiro um coração partido que os vários
joelhos ralados da minha infância.