segunda-feira, abril 16, 2007

Um conto

Reflexões de um mendigo Acordei cedo e notei minha garrafa vazia. A noite passada foi foda, o vento zunia desesperado em meus ouvidos, ainda bem que a pinga durou até eu dormir. É a maior delícia dormir sob o efeito da branquinha. Que vocês não venham me criticar, eu bebo não é por que gosto é a situação que me obriga. E agora deu pra ter manda chuva dando pauladas nas nossas cabeças, achando que nós somos sacos de lixos. Aí é que tem que beber mesmo. Esperei a multidão acabar, se esvaindo pelas ruas à fora, rumo aos seus trabalhos medíocres. Depois me levantei e fui na birosca do seu Jorge tomar um pingado e encher a minha garrafa. O que me chama a atenção no meio desse povo indo trabalhar, são as mulheres vestidas em trajes mil. No calor é pior ainda. Falo pior por que comigo o buraco é mais embaixo. Eu também sou ser humano e como tal também tenho desejos sexuais. Quero trepar, comer, realizar fantasias e gozar. E pra realizá-los é só por meio da masturbação, não há outro jeito. Nessa parte ainda dá pra realizar, o difícil é os meus sonhos que alimento desde que vim morar na rua. Sempre fui um sujeito muito confuso e inquieto. Fui criado em um orfanato. Ao completar quinze anos me lancei na vida a fim de conquistar as minhas coisas, com dezoito já tinha a minha casa de dois cômodos. Quando completei meus vinte e quatro anos fiquei revoltado com muita coisa em minha volta. Nessa época eu lia muito sobre as revoluções, as teorias e os pensadores como: Karl Marx, Aristóteles, Descartes, Kant, Rousseau, Maquiavel, Platão e Vygotsky. Eu não tinha com quem conversar, as pessoas que estavam em minha volta não acompanhavam o meu raciocínio, e quando encontrava alguém de alto nível intelectual esse dizia que eu falava demais. Então, pra ter certeza que tudo o que eu estava refletindo não era fruto do meu ser confuso, resolvi me posicionar. A primeira coisa foi me proibir o consumo de determinados produtos dos Estados Unidos, e olha que argumentações não faltavam. Depois fui me fechando até acreditar na auto-gestão e não mais pagar impostos, onde eu mesmo poderia consumir minhas próprias produções, desde meu café da manhã até a cama que acomodaria o meu sono. É claro que isso envolvia um carro também. Mas as minhas reflexões foram tão profundas que aqui estou, dormindo na rua sem pagar aluguel, sem colaborar com o pagamento da dívida externa, sem pagar imposto, sem contribuir com merda nenhuma. Quando tirei a conclusão me achei um grande idiota, pois para fazer minha própria roupa eu teria que comprar o pano, a linha de costura e uma máquina. Porra, o pano viria da indústria, a linha e a máquina também, aí não dá. Lembro que cheguei a pensar até no pequeno tubo que viria enrolado a linha de costura. Vim morar na rua. Na época em que eu lia os pensadores, também procurava informações atuais, pra isso eu precisava da porcaria da televisão e para assisti-la era necessário consumir energia, e era nesse momento que estavam discutindo a privatização das empresas fornecedoras de energia no Brasil. Às vezes apelava para os jornais vendidos nas bancas, mas era a mesma coisa, o dinheiro que eu pagava ao jornaleiro era dividido entre ele, o distribuidor, os editores, a gráfica e automaticamente cada um pagava suas contas com esse dinheiro. Queria arranjar um jeito de boicotar tudo, a empresa de telefonia, os artistas fabricados pela mídia, o tênis da apresentadora de televisão, a bicicleta de dezoito marchas, o carro do ano, a comida enlatada e várias outras coisas. Evitando consumir tudo isso, naturalmente eu não contribuiria com o salário daqueles soldadinhos de chumbo, que servem a uma minoria de pessoas chamada elite. Estava revoltado ao extremo e, pra não mandar todos tomarem no cu, resolvi morar na rua, pelo menos aqui não pago imposto nenhum, e olha que continuo atualizado. Tem uma banca de jornal ali na Ipiranga onde o jornaleiro, que me considera muito, devido as minhas dissertações, deixa-me ler todas as notícias dos jornais diários. Não vou dizer que aqui é o paraíso, mas só pelo fato de eu não estar contribuindo com nada, já me realizo internamente. Agora pouco estava dando altas gargalhadas com um companheiro de rua; felicidade em não fazer um filho que já iria nascer devendo. De vez em quando aparece algum universitário querendo fazer uma pesquisa sobre mendigos e acaba ficando pasmado em encontrar um cara como eu dormindo na rua. Digo que nem todo mendigo é um ser humano perdido, louco ou pinguço. Têm muitos como eu por aqui, muitos que quiseram evitar o padrão de vivência do mundo. Que optaram em não constituir uma família e ter que comprar presentes no natal, páscoa, dia das mães, dos pais, aniversário e outras datas capitalistas. Só assim para defender os ideais. Dou risada das pessoas que passam por nós e dizem ter dó, que isso não é vida. Não é vida a de vocês que acordam e vão trabalhar, chegam em casa tarde da noite, tomam banho, jantam e adormecem assistindo tv. E quando folgam vão correr atrás das coisas, resolver os problemas; oras, a folga não foi feita para descansar? Têm uns que folgam no fim de semana e vão gastar o que sobrou do salário. Pronto, a grana acabou e ainda ficou faltando. Isso é vida? Os jovens estão indo no mesmo caminho; trabalham e estudam, estudam e trabalham. Correm desde cedo almejando um futuro de sucesso, para adquirir bens e imóveis. E depois? Vão fazer o quê? Onde entra o ócio em tudo isso? E se morrer antes de tudo? Sim, por que a única certeza que temos é que a morte nos espera. Bom, deixa pra lá, dizem que sou louco, todos dizem. Mas o que é ser louco hoje em dia? Agora é noite. Junto meus panos, pego minha garrafa e me recolho. Sacolinha

Um comentário:

Anônimo disse...

quem não é louco ou louca ?
quem não sorri da própria desgraça?
quem não rasga dinheiro .Mas rasga a própria vida ?
quem não ama o inimigo cultuando suas profecias ?
Me diga quem?Quem ?quem ? quem ?quem não se mata ?
o seu conto é ótimo .ANa Paula