Os Prazeres de Sara*
E, no entanto, é ser humano...
(Trecho da poesia “Mina da Periferia”, do poeta Marcopezão)
Acordou decidida. Aquela seria a noite: ia dançar até seu corpo derreter em suor. A semana inteira tinha sido de trabalho pesado e condução lotada. Agora é só se entregar ao prazer com muita cachaça e forró.
Desde que Sara ficou sozinha no mundo, perdendo toda a família num incêndio que aconteceu na favela do Arco-Íris, ela se consola bebendo cachaça e dançando forró.
De toda a família era a única que tinha conseguido emprego com carteira assinada. Os outros dois irmãos haviam se juntado à mãe e ao avô na produção de bonecas pretas.
A casa em que viviam, na verdade, de casa tinha muito pouco. Era um barraco e fora pago com muito sacrifício por toda a família, na época anterior ao Real, e custara muito ganhar o dinheiro para comprá-lo.
Tudo se resumia a um barraco feio, mas, com a força e a criatividade da família, virou até destaque na favela. Usaram palha da costa na reforma e depois umas tintas que sobraram de uma construção e que foram dadas ao avô de Sara. Ficou uma beleza... Aí vieram as giras e as cantorias, os benzimentos e os passes, as esperanças de muito axé; tudo para atrair a melhor das proteções para aquele ambiente familiar conseguido com tanta luta.
Só que de nada adiantaram os pedidos e oferendas e a proteção não foi suficiente para conter o fogo que se alastrou por toda a favela naquela noite de 24 de dezembro.
A brincadeira dos marmanjos que acendiam rojões descuidadamente matou dezesseis pessoas. Entre elas estava toda a família de Sara. Só ela conseguiu se salvar porque se encontrava na casa de uma amiga, em outra favela, festejando a chegada do Natal.
Foi um baque terrível no coração de Sara, um choque que ficaria para sempre em sua vida.
Por incrível que pareça, ela só conseguiu suportar a perda graças ao forró e a cachaça. Houve mesmo até quem achasse que melhor seria se ela tivesse ido junto com os parentes...
Dois meses depois do ocorrido Sara ergueu a cabeça e também o barraco. Voltou a trabalhar e a viver. Parou de freqüentar o terreiro ao descobrir o forró. Só nele sentia uma nova sensação, provocada pelas luzes, pela música que mexia com ela toda assim que o triângulo, a sanfona, o reco-reco e o bloco sonoro invadiam o salão. Aí sim, todo seu interior gemia de prazer. Aquele ritmo nordestino lhe trazia alegria e leveza; uma satisfação que nem ela sabia explicar. Uma sensação doce e diferente, um incrível e irresistível tesão.
Pra melhorar a coisa, criara irmanada amizade com a cachaça. Eram comparsas e confidentes uma da outra! Aí pronto, estava como o diabo gosta...
Hoje Sara não troca a cachaça e uma noite de forró por nada neste mundo, pois acorda pensando na “mardita” e dorme pensando no forró. Não vê a hora de chegar o fim de semana pra se extasiar: sexta, sábado e domingo saracoteando o corpo, balançando a bunda, arrastando os pés naquele vai-não-vai como quem cerca galinha no terreiro.
A sensação que toma conta de sua alma quando não realiza o que gosta é a mesma que sente o viciado em drogas quando está sem o tóxico. Na abstenção, suas mãos tremem, seu espírito emburra, o pensamento embota, os movimentos lembram filme em câmera lenta. Sara mal consegue se concentrar; vira espectro de gente...
Mas naquela noite especial seria diferente, muito diferente. Acordara cedo e bem disposta; limpara toda a casa, lavara o banheiro, fizera uma comida cujo cheiro se fazia sentir longe. Depois passara o resto da tarde e o início da noite a ensaiar passos de forró.
“Vixe”, que vai ser bom demais...
Ao anoitecer, banho tomado e demorado, Sara saiu do banheiro como veio ao mundo. Depois que passara a morar sozinha, criara o hábito de andar nua pela casa. Seu corpo ainda tinha o viço dos primeiros dias de mocinha. Só a morte da família a envelhecera um pouco, mas ainda mantinha o corpo firme e cheio de curvas. Os seios duros, com bicos arrepiados e esperançosos por carinhos atrevidos, pareciam apontar algo no horizonte na vida daquela mulher.
Sara senta na cama e, enquanto coloca a minúscula calcinha branca, desvia o olhar para o retrato da família pregado na parede. Apesar da saudade que sente, não traz no semblante sinal algum de tristeza. No íntimo, Sara está sempre como que preparada para, a qualquer hora, ir ao encontro deles numa grandiosa festa. Mas isso é fantasia e agora só pensa em alegrar-se; é isso aí: naquela noite, só alegria em viver aquilo que mais gosta na vida!
— É hoje, é hoje, é hoje — repetia mentalmente e não pensava em outra coisa.
O show vinha sendo anunciado há mais de um mês e há duas semanas os ingressos já tinham sido todos vendidos. Ia ver o grupo que tanto gostava; é, ia ser o máximo.
Olha mais uma vez para o retrato na parede. Repara os traços duros do rosto do avô. Lembra-lhe a personalidade forte de homem que não deixa para amanhã o que pode fazer hoje, que nunca mede esforços para ter o que quer. Para ele não tinha tempo feio. Depois olha a mãe, sua figura que começa a desbotar no colorido esmaecido do retrato. Grande mulher, incentivadora da cultura afro, incentivadora da auto-estima em todos daquela família que liderava desde que o marido saíra para comprar leite para o filho recém-nascido e nunca mais voltara.
Sara havia puxado a beleza da mãe, mas a morte de todos e a chegada da pinga em sua vida faziam com que se escondesse algo de sua beleza natural.
Os lábios viviam ressecados, as olheiras passaram a emoldurar o seu olhar e as unhas, a cada dia que passava, iam se tornando cada vez mais frágeis e quebradiças.
Mas Sara pouco se lixava para isso. Para ela o que valia mesmo eram as noites de forró nos finais de semana, regadas a muita música e cachaça.
E aquela noite ia ser o máximo! Era tudo o que a fazia viver: muita emoção e alegria em meio ao calor que sentia agitando o corpo na noite e ao som que tão prazerosamente a embalava.
Ao terminar de se vestir, Sara colocou os brincos, pegou a carteira, conferiu o dinheiro, deu uma última olhada no espelho e tchau pra quem fica. Na saída, uma saudação ao Exu pendurado na porta. Era lembrança da Casa de Jorge Amado e que a mãe trouxera como recordação da viagem que um dia fizera à Bahia. Só aquele amuleto tinha se salvado do fogo que tentara, mas não conseguira, derreter-lhe o ferro.
No ponto de ônibus muitos passaram acionando a buzina para aquela mulher à espera da condução, à espera de uma noite feliz e nunca vivida antes.
Finalmente se viu embarcada naquele veículo poeirento e cheio de gente. O percurso até a casa noturna pareceu demorar uma eternidade. Quando desembarcou, viu que na porta do baile já havia uma imensa fila. No meio da balbúrdia, identificou as amigas de sempre.
Entra na frente de uma delas e depois dos cumprimentos começa a procurar o convite e algum dinheiro para comprar uma batida de amendoim.
Depois de dar algumas goladas na bebida, passa o copo para as colegas de forró. Sara e os outros da fila mexem os corpos no ritmo do som que vaza pelos buracos na parede da casa noturna.
O copo retorna às suas mãos e a pequena dose restante é consumida por ela em um só gole. Seca os lábios com o dorso do braço esquerdo, sem cuidado algum, fazendo o batom borrar os seus lábios.
Finalmente, Sara se vê dentro do paraíso. Muitos pares dançam; alguns arriscam passos solitários; outros aguardam a hora certa de chamar ou serem chamados para dançar.
De tempos em tempos o DJ anuncia a grande atração da noite:
— Enquanto isso vão dançando ao ritmo das minhas mãos... Uhuuuu!...
Sara e as colegas ocupam uma mesa no barzinho; pedem bebidas e ficam a conversar e a paquerar. Só ela está em sintonia consigo e com o mundo... Pessoas e mais pessoas entrando, dançando, barulho, suor começando a escorrer, conversas abafadas, harmonia, felicidade e tempo de se liberar, perder o juízo... é aquela sensação gostosa, incrível, fantástica, que voltava a habitar seu mundo.
Era como um ato natural, como beber água no copo de sempre, como dormir cansada na própria cama. Que maravilha!
Toma uma dose de conhaque e sai pelo salão bailando sozinha. Leve e solta se deixa conduzir pela música:
Mais uma noite que vem e eu aqui sem ninguém...
Com habilidade natural, Sara remexe a bunda junto a seu par imaginário. Puro erotismo no ar...
O coração no sufoco, de amor quase louco e ela não vem...
Ela roda o corpo de um lado pro outro. Sara começa a se liberar; o suor escorre pela face, pelas costas, pelas pernas roliças. Só tem ouvidos para o vozerio e para a música:
Meu coração é cigano, mas é cigano acampado,
E qualquer hora ele empaca, e chuta o pau da barraca,
E deixa o coração de lado...
Muitas músicas foram ouvidas e dançadas solitariamente madrugada afora, até que o DJ anunciou a grande atração da noite.
Os corações palpitam à medida que a fumaça vai tomando conta do palco. Os gritos se multiplicam.
Os pares agarradinhos se preparam para o rala-coxa final, o chachado derradeiro. Moças solitárias e mulheres maduras aproveitam para descansar, outras preferem ficar gritando para o vocalista do grupo. Em êxtase balançam freneticamente as mãos no ar. A partir deste momento o DJ se aposenta e só se ouve música ao vivo no salão calorento e de cheiro azedo.
É o show que começa.
A saudade quando pega dói, não tem dó do coração,
Faz o caboclo chorar, chorar, chorar, chorar, chorar...
Nas primeiras cinco músicas, Sara se embalou lentamente esperando que alguém a tirasse para dançar. Como tal não aconteceu, viu que tinha sobrado pra ela mesma. Bebeu mais umas e outras e dançou, dançou e dançou. O que começara à uma da manhã não tinha hora pra acabar. Só parou uma vez para ir ao banheiro e logo voltou àquele mundo que tanta felicidade parecia saber lhe proporcionar. No meio da dança ingeriu cachaça, vodca, uísque, bagaceira e muitas doses de caipirinha. Sentia seu corpo leve como o de um pássaro a voar sobre um campo verdejante.
Foi aí que tudo aconteceu.
Eram quatro da manhã e o grupo começou a tocar a saideira:
Ela sentiu saudades, ela me ligou...
Sara sente as pernas bambas, trêmulas. Parece-lhe que vai virar nos calcanhares quando seu corpo negro cai no chão. Confusa, só tem a recordação do retrato na parede com as figuras da família que insistiam em morar em sua lembrança.
Ninguém vê a mulher que se debate no chão pisadíssimo da casa noturna.
Ela diz que sofreu, sofreu de solidão,
e por telefone ela pediu perdão...
Um jovem vê Sara caída na pista de dança e corre para ajudar. Pede por socorro e pela intensidade com que Sara se debate o jovem julga que ela sofre muito.
Mas ele se engana, Sara está livre, leve e solta; seu corpo parece flutuar.
O cantor pede ao público que acompanhe a música na palma das mãos. É o fechamento do show com chave de ouro. O ruído é intenso e ninguém ouve o pedido de ajuda do jovem que tenta socorrer Sara.
Ela diz que me ama, ela se soltou,
e por telefone ela se entregou.
Ela diz que vem, e eu vou esperar...
O corpo de Sara não mais convulsiona e apenas se deixa abater por um leve tremor. Seus olhos antes vivos e provocantes começam a perder o brilho. Uma lágrima escorre serena pelo canto da face contrária àquela que repousa sobre o chão. Enquanto a música vai de encontro ao final da festa, o rosto de Sara serenamente transfigura-se, relaxado, parecendo esboçar um leve sorriso.
Ela chorou de amor, de que que ela chorou...
Foi a última frase que ela ouviu. Um longo e suave suspiro saiu por sua boca entreaberta. Uma leveza absoluta e definitiva tomou conta de todo o corpo de Sara. Agora sentia que já não era mais o retrato na parede, mas toda a sua família que vinha a seu encontro.
Sacolinha
*Publicado nos Cadernos Negros vol. 28, em 2005