terça-feira, novembro 04, 2008

Vale a pena ler de novo

O Quarto Escuro

“...Porque o passado me traz uma lembrança Do tempo que eu era criança E o medo era motivo de choro Desculpa pra um abraço ou um consolo”

Cazuza / Frejat

Desde criança eu tenho medo de ser trancado em um cômodo sem luz e janelas, abafado e silencioso. Coisas da minha imaginação. Quem me conhece sabe que esse continua sendo o maior medo da minha vida.

O problema é que cada dia que passa sinto-me mais próximo desse cômodo. Há tempos ando agoniado com as pessoas, todas elas. Essas pessoas estão transformando o tempo e o espaço em algo irreversível. E vou falar apenas da capital onde vivo, para se ter idéia do tamanho da coisa.

No momento em que escrevo esse texto, tenho apenas 24 anos, não vivi praticamente nada, mas tenho punho para falar do que me aflige.

Percebo que estamos caminhando para um outro mundo cada vez mais subjetivo. Hoje dificilmente vejo as pessoas se cumprimentarem. Inclusive quando embarco num ônibus e lanço um bom dia, noto que o motorista e o cobrador se surpreendem com esse ato. Perderam o costume, agora estão armados de palavras rudes para acertar na cara daqueles que não reconhecem que a culpa das más condições do transporte público não é deles.

A mesma coisa acontece com funcionários públicos do setor de saúde que trabalham de mau humor. Chego a repetir duas ou três vezes o cumprimento, para eles entenderem que ainda somos seres humanos. E mesmo quando o cumprimento é retribuído ainda falta aquela coisa de olhar nos olhos.

Mas não é só isso que me aflige, é um amontoado de coisas e cenas que acontecem neste mundo contemporâneo e que contribuem para sermos cada vez mais acuados no cômodo escuro.

Chegam 500 carros novos por dia na cidade, alguns afirmam que são 800. Ressalto que são carros novos, imaginem se juntar com aqueles usados que vêm de outros estados ou que saem dos pátios de polícia para leilão, são arrumados e postos na rua para circular?

Estou falando apenas de carros, as próprias pesquisas se perdem quando o assunto são as motocicletas. Só no município de Suzano onde moro, abriram de 2006 pra 2008, 12 concessionárias de motos que vendem em média cerca de 96 motos por dia, equivalente a oito para cada concessionária.

As rodovias, estradas e avenidas estão cada dia mais lotadas de veículos. Foi-se o tempo em que eu vinha pela Marginal Tietê ou Pinheiros na madrugada e tinha cerca de meia-dúzia de carros. Hoje até nesse horário há trânsito. Alguma coisa está errada.

Nunca ouvi falar tanto de solução para o trânsito como agora. Não há mais espaços para pontes e elevados, muito menos imensos terrenos para fazer alternativas. Espero que desistam da idéia de furar quilômetros de túnel para o trânsito de veículos.

Antigamente morria muito mais gente e nascia muito menos do que hoje. Agora a medicina está bem avançada e existem muitas drogas que prolongam o tempo de vida das pessoas. Hoje nascem cerca de 600 crianças por dia, somente na cidade de São Paulo. Junte esse número com os imigrantes que chegam de todos os lugares do mundo. Meu Deus, São Paulo vai explodir.

Com tudo isso acontecendo minuto a minuto, as conseqüências estão tomando proporções vistas a olhos nus (sem o auxílio de pesquisas e estatísticas).

Não é de se admirar saber que centenas de famílias ricas estão adotando o sistema de microchip subcutâneo, um chip do tamanho de um grão de arroz que é injetado com seringa ou pistola de vacina sob a pele. O usuário é rastreado 24 horas por dia, todos os dias. A central de controle e processamento de dados fica na América do Norte e entra em ação a qualquer suspeita de seqüestro do cliente.

Ainda no ramo do rastreamento, vale dizer que aquela frase avisando pra sorrir “que você está sendo filmado” já está tão batida que as empresas e o poder público nem usam mais. Também, precisaria de muitos adesivos para colocar nas mais de 700.000 câmeras espalhadas em prédios, ruas, praças, calçadas, elevadores, shoppings, aeroportos, caixas eletrônicos e ônibus da capital. Falta pouco para o monitoramento de nossas casas.

Antes ainda conseguíamos colocar o dedo no nariz com privacidade, sem medo de sermos descobertos. Agora tenho dó dos jovens casais que gostam de dar uns amassos pelos cantos.

Assisti a uma matéria num tele-jornal falando dos carros que passarão a ser monitorados com chips. Tudo que o motorista fazer de errado em qualquer hora e qualquer dia será registrado por esse chip que enviará informações a 2.500 antenas conectadas à central de processamento de dados da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET). Não pense que isso é para o futuro, só se o futuro for em 2009, ano previsto para a instalação dos chips em todos os carros da capital.

Se não bastassem os condomínios fechados, as empreiteiras e construtoras estão investindo numa tendência americana que está dando mais dinheiro ultimamente; os empreendimentos imobiliários onde os moradores têm de tudo, de spa à shoppings. Nem precisam sair de casa, ou melhor, da sua cidade planejada.

E aquilo que chamo de “cultura da objetividade e do imediatismo” está se consolidando cada dia mais: as pessoas não têm tempo para ler e entender poesia, preferem os filmes aos livros. A literatura e a filosofia estão perdendo espaço para os artigos científicos que são mais objetivos.

Aluno precisou de um trabalho escolar vai à internet e tá lá, prontinho, basta colocar o nome, imprimir e entregar.

Sempre ouvi as pessoas dizendo pra eu fazer algo que dê dinheiro. Tem que ser rápido, fazer e pronto. Inclusive arte mudou, tem que ser aquela instantânea, consumiu hoje, amanhã já era. Outro dia estava parado num farol com meu veículo e escutava um cd do Luiz Gonzaga. O volume estava alto e ao olhar para meu lado esquerdo vi as pessoas olhando curiosas para mim. Pensei: “Será que eles estavam esperando um idoso no volante? Ou que o som que saísse do carro fosse uma música conhecida de todos, tipo aquela que está bombando em tudo que é lugar? Ou será que é estranho nos dias de hoje um jovem escutando música de raiz?”.

Fiquei cismado.

Na última vez que fiz exame de sangue o médico falou pra mim que meu colesterol estava acima do normal e perguntou o que eu pretendia fazer para diminuir. Disse a ele que tempos atrás eu recorreria às frutas, verduras e legumes. Mas depois dos agrotóxicos eu prefiro ficar com o colesterol assim. E leite só se for direto da fonte. Lembram do leite batizado?

De repente tem mais por aí, a gente não sabe porque ainda não descobriram.

Quando tomei conhecimento do que era o mundo, planejei de que quando estivesse bem estruturado financeiramente compraria um terreno em alguma cidade no interior, levantaria uma boa casa, com um imenso quintal e piscina para viver tranqüilo depois dos filhos já criados. Hoje já não alimento mais essa idéia, não haverá tempo e as cidades do interior também enfrentarão a superlotação.

Lembro que cheguei à Suzano em 1998. Vim do bairro Itaquera, Zona Leste de São Paulo. A diferença era que as pessoas eram mais calmas e havia aquele cheiro de mato, ar fresco. Dez anos depois tudo mudou assustadoramente.

Não estou reclamando do progresso, até porque sempre fui á favor dele, somente estou fazendo algumas observações do modo como foi e está sendo conduzida a humanidade.

Sim, todos temos culpas, não adianta se esconder.

O ato de viver está ficando sufocante a cada dia. Riobaldo de Grande Sertão: Veredas, sempre afirmou que “viver é coisa muito perigosa”. Isso está se confirmando todos os dias.

Por tudo que já citei e por outras coisas que você já sabe é que tenho medo de estar próximo desse cômodo escuro. Sinto saudades do tempo em que eu era criança e nem sabia o que era o mundo.

Socorro.

Sacolinha!