O último azulejo*
Irene saiu de casa esbanjando alegria, tudo nela exalava satisfação; a roupa, o cabelo e os olhos. Finalmente sairia do aluguel para morar no que é seu.
Parou na padaria para tomar um pingado. Enquanto bebia o líquido quentíssimo, como se estivesse tomando sopa lembrava por tudo que passou para chegar àquele dia.
Chegou a comprar três terrenos, para somente um ser o seu. O primeiro foi estelionato e o segundo era terreno público em área de manancial. Somente depois de tudo isso é que aprendeu a consultar a prefeitura ou o cartório, e assim conseguir comprar um imóvel dentro da lei. Também, coitada, mineira que chegou a São Paulo na década de 80 e não teve tempo pra estudos, somente trabalho em casa de família. A vida inteira assim, até que se casou e conseguiu um emprego definitivo como auxiliar de limpeza no hospital Santa Marcelina. Foi com esse emprego que começou a guardar dinheiro para sair do aluguel. Mas o marido era quase um chupim, vivia sem trabalhar. Uma hora ou outra fazia um bico aqui ou um biscate ali, e o restante do mês passava nas costas da mulher. Irene logo ficou grávida e veio o primeiro filho. No calor da primeira vez o relacionamento parecia mudar. Ele arrumou um emprego e parecia mais bonzinho. Bebida, era só uma dose de qualquer coisa pra abrir o apetite. Isso Irene agüentava, e até dava aquele beijo de saída e de chegada que havia cessado no início do casamento.
Assim que a criança completou seis meses, Irene ficou grávida novamente e tudo começou a se perder outra vez. Ele não a procurava mais, quase não queria saber dos filhos e só não perdeu o emprego, pelo contrário, parecia mais trabalhador do que antes. Saía de casa bem cedo e voltava quase no fim da noite. Ela sabia que alguma coisa estava errada nisso tudo. E estava mesmo. Três anos mais tarde o marido saiu de casa para casar com a amante. Um baque terrível no coração e na cabeça de Irene.
Agora dava conta sozinha do aluguel e das duas crianças. Decidiu por orgulho não ir atrás do cafajeste para cobrar pensão. Daria conta do recado, afinal era de Minas Gerais e não se entregava fácil.
Passados mais cinco anos a angústia já tinha ido embora e o que reinava era mesmo a dificuldade de ser mãe solteira, ter de trabalhar, cuidar dos filhos, levá-los à escola, cozinhar, comprar roupas e dar atenção especial ao menino mais novo que vivia doente.
Fora tudo isso ela tentava adquirir um terreno, e foi quando aconteceu os incidentes.
Mas agora estava tudo andando na linha. Há seis anos comprara o terreno e passou os dois últimos construindo. Uma parede pronta aqui, uma coluna enchida ali e o pagamento para o pedreiro. Construiu a casa em quatro fazes: Alicerce, paredes e colunas, laje e agora o acabamento.
Acabou de bebericar o pingado, pagou e saiu contente em direção ao ponto de ônibus. Embarcou na condução e assim que sentou retornou seus pensamentos a casa. Falava sozinha:
- Até que enfim meu Deus.
Da janela do ônibus olhava para as casas lá fora e tentava imaginar que tipo de piso ou azulejo elas tinham em seus interiores.
No dia anterior passou na casa nova e conferiu o acabamento. Só faltava a cozinha, o piso da cozinha. Deixou o dinheiro da parcela final do pedreiro e pediu pra caprichar na finalização. E que quando estivesse colocando a última peça lembrasse que aquilo era um momento histórico na vida dela.
Chegou ao hospital e lá trabalhou muito melhor que todos os outros dias da sua vida. E ninguém percebia isso, somente ela, porque era só dela aquele momento.
Amanhã será a folga. Com a ajuda das crianças e dos carregadores do caminhão vai mudar para a sua casa. E Irene não pára um só instante, não deixa um minuto sequer para a tristeza. Casa nova, vida nova. Daqui pra frente tudo vai ser bom pra ela e para os que saíram dela. Agora sim vai poder dedicar mais tempo para os seus filhos quase homens.
Ela largou do emprego às cinco da tarde. Trancou o uniforme em seu armário e partiu com a intenção de ir ver a casa pronta.
Foi quando ela atravessava a rua, distraída pela alegria, que o Ferraizão, ônibus com destino a cidade de Ferraz de Vasconcelos, lotado de passageiros, passou por cima das suas pernas, esmagando-as e deixando somente uma massa de carne cheia de sangue. Irene ainda tentou levantar várias vezes enquanto o resgate não vinha. Houve um momento em que ela conseguiu ficar sentada.
O resgate chegou quando ela dizia:
- Tá doendo, tá doendo.
O médico disse que ela iria ficar bem, mas apenas fazia o seu papel. Na hora em que ela foi colocada na ambulância começou a dizer insistentemente:
- Eu tô feliz doutor, minha casa ficou pronta, eu vou me mudar para o que é meu.
Morreu antes mesmo de chegar ao hospital.
Lá em Itaquera, na Rua Bartolomeu Ferreira, o pedreiro terminava de colocar o piso e se preparava para lavar as ferramentas.
Sacolinha
* publicado originalmente na revista Não Funciona nº 18 - dezembro - 2008