Yakissoba
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Sacolinha
Cheguei cedo naquele dia.
As contas já estavam atrasadas e a geladeira, vazia, há muito vinha pedindo alimento.
Precisava vender no mínimo uns quatro exemplares do meu novo romance.
Desembarquei no metrô Consolação às 20h. Segui sentido metrô Brigadeiro.
No caminho ia parando nos botecos e, com um jeito educado e brincalhão, sentava nas mesas e oferecia o exemplar: um “não” aqui, outro “não” ali... Nada de errado, o começo é assim mesmo.
Cheguei ao final da avenida Paulista. Passei para o lado contrário. Bom, pelo menos ali haviam duas universidades; poderia rolar algumas vendas. Estudantes instruídos, adeptos da leitura, acostumados a comprar livros de alto custo... Era o lugar certo.
Na primeira universidade os estudantes estavam em intervalo; alguns conversavam sentados no escadão, outros namoravam em frente à lanchonete.
Ensaiei algumas palavras e rumei para o escadão.
Trinta abordagens.
O resultado foi a minha saída de cabeça baixa daquele recinto. E, se elogio fosse dinheiro, sairia dali de bolso cheio.
A fome começou a roçar o meu estômago. Só haviam dez reais na carteira e com isso eu não conseguiria comer nem o churrasco vendido na calçada, já que o ditado capitalista diz: “Quem anda pela Paulista é quem tem dinheiro”.
Pobre de mim.
Passando em frente à segunda universidade, abordo três estudantes. Apenas um deles me dá atenção, enquanto os outros dois se entretém tirando fotos com o celular.
Depois de ler a orelha do livro, o rapaz de voz efeminada agradece e diz que está sem dinheiro:
- Nós somos estudantes camarada; estudante não tem grana.
Saí resmungando: “Não têm dinheiro, mas ficam trocando fotos entre os celulares”.
Continuei curtindo caminhada até o início da avenida, onde hoje está o Cine Belas Artes.
Entrei num bar e fui até o banheiro esvaziar a bexiga. Na saída fiquei paquerando uma empada toda murcha e cheia de rugas.
Não podia gastar o pouco que tinha no bolso e, se fosse pra comer alguma coisa, que comesse mais tarde, na hora em que não desse mais para continuar de pé. Qualquer bolacha dá pra enganar o estômago.
Uma nova abordagem:
- Licença e boa noite. Podem contar no relógio, não irá passar de um minuto. Eu não quero encher o saco de vocês.
A recepção nada me alegrou, mas continuei:
- Sou o fulano de tal e sou escritor, autor deste romance...
Enquanto as quatro pessoas folheavam o livro eu ía puxando a sardinha para a minha brasa:
- Já lancei no Rio de Janeiro, em Minas, no Ceará e semana que vem estarei indo lançá-lo na Bahia.
Nenhum deles dava atenção ao que eu dizia. Um outro desistiu de continuar folheando e deu um gole na cerveja. Apesar do barulho dos carros a passando pela avenida, consegui ouvir o som da cerveja descendo na goela do rapaz. Eu, que odeio cerveja, de repente senti uma grande vontade de beber uma. Era a sede que junto com a fome conspirava contra o meu organismo.
Tentei mais um apelo:
- Esses são os últimos exemplares da terceira edição.
A simpatia tomou o lugar das caras fechadas. Ouvi os seguintes comentários:
- Parabéns pela obra, mas estou sem dinheiro.
- Muito bonito esse livro. Mas você apareceu num dia ruim.
- Vai ficar pra próxima. Boa sorte nas suas vendas.
Pensei comigo: “Vendas, que vendas”?
Segui cantando: “Ando devagar por que já tive pressa e levo o meu sorriso, por que já sofri demais...”
Encontrei um boteco com muitas mesas. Um som ambiente alegrava as pessoas no local. Estudei os trajes e me aprumei nas conversas.
- Livro isso, livro aquilo...
- Se nós pensarmos que a reciprocidade da coisa...
- Houve muita redundância na Semana de Arte Moderna...
Ouvindo esses diálogos meus olhinhos brilharam. Finalmente iria vender uns livros.
Primeira mesa: não.
Segunda: você está por aqui todo dia?
Terceira: vamos deixar pra depois por que hoje a grana tá curta.
Quarta: Parabéns pela sua coragem.
E assim seguiu em todas as mesas. Não consegui me conformar. Ainda houve um momento em que um senhor com sua amante me disse:
- Depois de amanhã eu pego; agora só tenho dez reais para abastecer o carro e chegar em casa.
Enquanto ia me retirando o garçom trazia na bandeja o troco do senhor: trinta e cinco reais.
Saí balançando a cabeça.
Já iam dar dez horas e nem uma venda.
- Puta que o pariu.
Tinha que pensar numa nova estratégia; já menti, usei do exagero, aumentei os fatos e nada. Nem no cheque consegui venda.
E a fome à bailar em meu estômago.
Comecei a prestar atenção naquele macarrão dos japoneses. Sempre havia alguém em volta do carrinho comprando aquilo. Olhei a placa dos preços:
Pequeno: R$ 2,50
Médio: 4,00
Grande: 6,00
Nessas alturas necessitava de no mínimo duas porções grandes.
Venci a tentação e segui cogitando alguma venda. Quem sabe lá na frente não acho uma barraca de doces. Assim faço um lanche com três reais: é um suco e dois pacotes de bolachas.
Andei. Parei. Andei. Parei.
Nada de vendas e nada de barracas.
Passei novamente para o outro lado. Avistei um homem vendendo amendoim em cima de uma lata que servia de fogareiro. O mantimento vinha dentro de um pequeno cone.
Chamei o vendedor e enquanto perguntava o preço ia procurando moedas no compartimento da carteira.
- Um real e cinqüenta, meu companheiro.
Preferi não negociar. O cara teve a cara de pau de me cobrar um e cinqüenta numa pequena porção de amendoim, digna de mesa de boteco, e ainda me chamar de companheiro.
- Ah, vai tomar no cu!
Saquei a minha preciosa nota de dez, peguei o troco e sai mastigando amendoim desesperadamente.
Mais à frente, uma senhora me pára pedindo um vale-transporte. Falo que sou escritor e que estou vendendo meus livros. Quando vou mostrar um exemplar ela vira as costas e sai rapidamente.
Solto uma risada frouxa. Continuo na peregrinação.
O amendoim só aumentou mais o incômodo na barriga, despertou a dormência que amenizava a fome.
Bebi água morna numa padaria, o estômago doeu ao receber o líquido.
Parei na porta de uma famosa loja de hambúrgueres e kibes; analisei os valores. Nada que o meu dinheiro pudesse comprar. Para meu consolo, lembrei de um conhecido que quando trabalhava numa dessas lojas, costumava cuspir dentro do pão e passar o queijo geladinho em sua testa.
Cheguei na consolação. Prometi pra mim mesmo que só iria dar mais uma volta, quem sabe não estouro algumas vendas. O negócio é persistir.
E lá fui eu, rumo aos vários “não”, sentindo o fracasso daquela noite calorenta.
Agora andava devagar, parecia estudar os passos. A minha situação não me deixava avançar como antes. As pessoas que passavam por mim seguravam seus pertences. Comecei a cantar procurando desviar a atenção de tudo: da fome, das pessoas com medo de serem roubadas, da polícia que passava na viatura a me encarar, dos mendigos que se preparavam para dormir e dos “não” constantes. Só não conseguia desviar a atenção de uma coisa: daquele macarrão que os japoneses produziam na beira da calçada.
O cheiro acariciava as minhas narinas. Nunca comi esse tipo de comida japonesa. Imaginei comê-la naquele dia, assim matava a fome e a curiosidade.
Pensei em parar no próximo japonês. Caminhei, caminhei e nada. Cheguei no final da avenida Paulista e passei para o outro lado. Quando encontrei um, esse já desfazia a barraca. Notei o resto de macarrão dentro de duas sacolas. Senti nojo, mas nada que tirasse a minha vontade em encontrar um próximo “macarronês”.
Num certo momento da minha caminhada comecei a ter ilusão. Via barracas e barracas lotadas de orientais. Esfreguei os olhos e sentei por um instante. Acho que a fome está me deixando louco, preciso de algum alimento urgente.
Levantei e andei sem parar, com a mochila cheia de livros castigando as costas. Muitos japoneses haviam ido embora. Fui achar uma barraca de macarrão quase no início da avenida. A placa estava com valor diferente:
Pequeno: R$ 4,00
Médio: 6,00
Grande: 8,00
Protestei comparando valores. O japonês falou que o preço dele era aquele mesmo e que a essa hora só havia sua barraca.
Preferi não discutir:
- Me dá um macarrão pequeno.
- Isso no é macarron, é yakissoba.
- Tá bom, me dá isso aí logo.
Pra não rolar desconfiança, paguei e fui me sentar no degrau de uma agência bancária que havia em frente. O tal macarrão sumiu em um minuto. Não pensei duas vezes, já estava fodido mesmo:
- Dá mais outro aí.
Esse deu para mastigar e amenizar a fome. Até que é bom o macarrão japonês.
Terminei de mastigar e resolvi ir embora. Lá na periferia eu vendo mais livro do que aqui.
Passei meu último bilhete na catraca do metrô. O dinheiro na carteira só não havia zerado por causa dos cinqüenta centavos de troco do amendoim. Troco que gastei na baldeação no Brás (metrô/trem) comprando um suco feito com água do banheiro feminino. Sei disso porque trabalhei três anos ali e via as mulheres entrarem e saírem do banheiro com baldes de água; além disso, todas as barracas daquela estação não são abastecidas com água encanada.
Sentei na escada, num local onde dava pra ver a chegada do trem. Na hora em que o danado encostar vou me agarrar à porta, tenho que sentar de qualquer jeito, o meu corpo está dolorido ao extremo.
Como é bom sentir a barriga cheia... Oh maravilha.
Na próxima vez já vou levar o dinheiro do macarrão separado. Será que o tal de yakissoba é tão bom assim ou é por que eu estava com uma maldita fome?
O trem chegou. Desci a escada quase quebrando as canelas e fiquei em frente a uma porta aguardando a sua abertura. Odeio fazer isso, mas hoje eu preciso.
Corri, mas só sobrou um banco que é destinado aos velhinhos. Olhei para as cabeças procurando a branquidão dos cabelos. Não vendo nada parecido, sentei-me e disse em pensamento: “Ninguém tasca”.
Dei mais uma olhadela para me certificar. Tudo gente nova; os idosos já estavam sentados. Se entrar algum tiozinho ou tiazinha numa outra estação eu levanto. Num quero encrenca, odeio gente barraqueira, e no trem está cheio delas. Inclusive quando o vagão está lotado e eu estou de pé. Procuro ficar de frente pra porta e de costas pros passageiros. É você encostar na traseira de alguém e ser acusado de estuprador. Aí, tome porrada.
Abri o romance do Graciliano Ramos e quando estava me entrosando na leitura, o trem chega na estação Tatuapé. Vejo uma mulher entrando e começo a observá-la. Tem umas rugas e uns pés-de-galinha no rosto. Julgo que tenha os seus quarenta e tantos anos, mas parece mais idosa. Levanto-me rapidamente e dou lugar. Ela parece resistir, mas vendo o banco livre, agarra-o.
Nem me agradece. O rosto começa a mudar, creio que está ficando com raiva.
Saquei a dela e resolvi ir para o fundo do vagão. Vaidosa como todo brasileiro, simplesmente devia estar se perguntando se é velha demais para um jovem oferecer lugar a ela.
Sento no chão e me envolvo na leitura.
Depois da última baldeação em Guaianases, o trem me deixa no meu município.
Sem grana, e à essa hora, sem ônibus, vou a pé pra casa. No caminho tenho a infelicidade de ser abordado pela polícia. Intimamente dou risada; lá na Paulista eu é que abordava, aqui me abordam.
O policial que olhou dentro da mochila perguntou se eu era livreiro:
- Sou livreiro, editor, escritor, vendedor, modelo da capa do meu livro...
Ele deu risada. Perguntou o que eu fazia aquela hora na rua:
- Estou vindo da labuta. Estava em São Paulo tentando vender algum livro.
- E conseguiu? – Perguntou um outro policial.
- Que nada, lá só tem leitor de rótulo de cerveja.
Ao término da abordagem me ofereceram carona. Agradeci e fui caminhando. Chegar em casa de viatura não dá. Qualquer hora do dia ou da noite tem algum vizinho vigiando a vida alheia. Aí, quando o dia raiar é só fofoca:
- O filho da dona Cleide tava aprontando, chegou de madrugada na mão da polícia.
E vai saber qual é a dessas autoridades; tem dia que já chegam dando tapa na cara. Num dá pra confiar.
Cheguei em casa e me aliviei do peso da mochila; quem disse que cultura não pesa?
Olhei nas panelas e na geladeira; não há nada que me interessa. Também, depois dum macarrão daqueles...
Tomo um banho e escovo os dentes. O sono está igual galinha sendo cercada no terreiro: vem, não vem.
Deito no sofá e volto ao Graciliano Ramos. Minutos depois adormeço com o livro em cima da barriga e o pensamento no macarrão da Paulista.