Quando, em Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda falou no brasileiro como “homem cordial” provocou uma inesperada polêmica. Cordialidade, num país em que a violência é endêmica (e às vezes epidêmica) desde o período colonial? O próprio autor teve de explicar que cordial não quer dizer polido, gentil, bem-educado, e sim emocional – a palavra vem do latim “cor, cordis”, coração. Quando a desestruturação emocional junta-se a uma conjuntura social desfavorável – pobreza, desemprego, desigualdade, falta de oportunidade – nós temos aquela massa crítica que gera a violência, da qual as manchetes de jornal e os noticiários do rádio e da tevê registram diariamente. Esta violência também aparece na literatura brasileira, e em diferentes formas. Para os escritores engajados, como o Jorge Amado da primeira fase, tratava-se antes de mais nada de uma questão de miséria, de injustiça. Uma mudança significativa ocorreu com Rubem Fonseca. Ex-delegado de polícia, o autor de Feliz Ano Novo conhecia por experiência própria os bastidores do crime e foi assim capaz de descrever a violência como um fenômeno psicológico. O mesmo encontramos em Cidade de Deus, de Paulo Lins, do qual se originou o filme dirigido por Fernando Meirelles. Desta vertente faz parte 85 Letras e um Disparo, de Ademiro Alves, que todo mundo conhece como Sacolinha.
Nascido em São Paulo, em 1983, Sacolinha está ainda no início de sua carreira: começou a escrever em 2002 e já em setembro de 2003 tinha um conto premiado em concurso literário. Participou em antologias, e, inquieto ativista cultural, foi convidado, em 2005 a assumir a Coordenadoria de Literatura na Secretaria Municipal de Cultura de Suzano, S.P. Neste mesmo ano apareceu seu primeiro livro, o romance Graduado em Marginalidade. Sacolinha não é daqueles escritores que fica encerrado em seu gabinete, à espera de que o público lhe bata à porta. Vende livros na noite de São Paulo, dá palestras sobre literatura e questão racial, participa em eventos literários. Para usar uma expressão que fala de épocas libertárias, diríamos que se trata de um escritor engajado. 85 Letras e um Disparo é prova disso. O que temos aqui são histórias curtas (algumas linhas, no caso daquela que dá título ao volume) girando em torno à questão da violência. Violência que emerge, e isto o autor nos deixa claro, da conjuntura social em que vive o nosso país. Uma situação que Sacolinha descreve com realismo, mas também com humor e com ironia. Tomem como exemplo o começo do conto Traição na joalheria do shopping: “Nunca fui de trabalhar. Sempre investi nos assaltos e assim consigo me manter. Parceiro não tenho e, às vezes, quando necessito de ajuda num assalto, eu terceirizo a mão de obra.” O que temos aqui é a mistura de duas linguagens. Uma, a do marginal: “Nunca fui de trabalhar”. A outra é comicamente empresarial: “Sempre investi nos assaltos”, “terceirizo a mão de obra”. E mais irônico ainda é o final do conto, que não vou contar para não estragar a surpresa.
A primeira edição de 85 Letras e um Disparo, lançada em 2006, teve excelente repercussão. Nesta segunda edição, três novos contos aparecem. O aluno que só queria cabular uma aula mostra a revolta de um garoto contra a escola que ele vê como um lugar de opressão (um sentimento provavelmente partilhado por muitos jovens brasileiros). Quem tem medo de cagar não come é uma seqüência de desastres: “Num vendi livros, minha namorada com frescuras, os atrasos, a perda do meu celular, a louca tagarela ao meu lado me fungando, o bêbado, o motorista do ônibus me sacaneando e um monte de trabalhos em casa.” Mas, como diz o título (e que por sua vez é a frase de um bêbado), a vida é assim, é preciso enfrentar desafios deixando os receios de lado, porque “quem tem medo de cagar não come”. O terceiro conto tem um título curioso: Sulfato Ferroso. Para quem não, este é o nome do medicamento usado para tratar a anemia por carência de ferro, uma situação extremamente comum em países pobres como o Brasil. Mas aqui Sulfato Ferroso é o apelido de um capoeirista baiano que vem para São Paulo acreditando, como muitos outros, que vai melhorar de vida. Isto não acontece, claro, e a ruminação de Sulfato Ferroso sobre o seu destino é o tema do texto.
A maior qualidade de Sacolinha é sua espontaneidade. A linguagem ficcional brota dele naturalmente, sem frescuras, sem pretensões a grande literatura, ainda que ele seja influenciado por muitos bons autores. E esta espontaneidade, esta autenticidade são dignas de admiração. Estamos diante de um talento nato. Sacolinha ainda é jovem, tem uma longo caminho pela frente. Pois eu digo: acompanhem-no neste caminho. Ele levará vocês ao encontro do Brasil verdadeiro.
Moacyr Scliar