segunda-feira, julho 16, 2007

CAMINHOS CRUZADOS*

*Conto retirado do livro 85 Letras e um Disparo - 2006 Verão de 1994. Três horas da tarde. A partida havia parado por conta do calor de 42º que castigava as cabeças dos 22 jogadores. Kauê saiu calmamente do campo, conversando com Tico, zagueiro do seu time. Firmino, jovem de 26 anos que até então assistia a tudo, abordou Kauê: - E aí Negão, posso conversar com a sua pessoa? – Perguntou Firmino. - Pode não, deve. Num sou nem uma estrela pra você perguntar isso – Responde Kauê. O zagueiro cumprimentou os dois e foi embora. Firmino olhou firme nos olhos de Kauê e disse: - Matei, tô roubando, cheirando e bebendo. E aí, que tu tem pra mim dizer? Kauê tentou raciocinar: como assim, por que, o que eu falo? Acabou por responder: - Firmino, que história é essa rapá, tá louco é? - Que louco o quê Negão, foi o que aprendi a fazer. - Porra Firmino, tanta coisa pra aprender e você foi aprender logo isso? Kauê e Firmino cresceram juntos no Morro do Culhão, Rio de Janeiro. Os dois têm a mesma idade. Presenciaram muitas coisas junto, entre elas, o destino das pessoas que entraram na vida do crime através do tráfico de armas e drogas. O pacto que fizeram na adolescência era de que nenhum deles iria se envolver com qualquer tipo de coisa que levasse ao caminho do mal. É claro que não viraram santo, mas seguiram à risca este pacto. Aos dezessete anos Kauê começou a compor sambas enredos para alguns blocos carnavalescos. O primeiro enredo de sua autoria foi o escolhido por uma escola. Nem precisou distribuir a letra xerocada e muito menos lotar um ônibus para torcerem pro seu samba no dia da seleção, como muitos faziam. A partir daí, arriscou algumas poesias, mas não tinha o tal veio literário, sendo assim, ficou só nos enredos mesmo. Firmino deixava a vida o levar. - Tô trampando, tô ajudando no barraco, minha cerveja é eu que pago, então o resto é que se foda, tá ligado? Resumia assim a sua vida. O início da juventude dos dois, fora um momento indescritível, prazeroso até demais para quem viveu cercado de miséria e teve que dormir no chão para não ter o perigo de ser vítima de bala perdida. Nos finais de semana os dois iam ao baile e à praia. Dinheiro quase não tinham, mas viviam cercados de mulheres e amigos. Kauê costumava comparar a vida deles como a de um artista malandro: - Nós somos igual a um poeta de nome Bocage; o cara trepou, bebeu, comeu e fodeu sem ter dinheiro, como ele mesmo dizia quando era vivo. E dizem que o malandro ainda pediu pra escrever isso na lápide dele, há, há, há... Vê se pode? Kauê até conseguiu convencer Firmino de fazer um curso qualquer pra ter uma segurança, um diploma debaixo do braço pra quando precisasse. Mas, logo na primeira semana de aula, Firmino se sentia excluído da turma. Não entendia porra nenhuma do que a instrutora dizia e, nesta situação de iniciante, só havia ele. E pra piorar, a danada da professora era um mulherão. Enquanto ela explicava Firmino ficava contemplando aquelas pernas, imaginando os dois sozinhos na sala e ele a seduzindo de tal forma que a aula começou a ser prática: ela pegava em seu mouse e explicava detalhe por detalhe daquele instrumento essencial para o bom desempenho do computador que, naquele instante era o teu corpo. E quando ele começava a introduzir seu mouse naquela tela de prazeres, a professora o despertou do devaneio: - Firmino, não está me ouvindo não? Acabou largando o curso: - Não dá não Negão, essa merda de linguagem HTML e os escambaus não é pra mim, deixa pros boy. Meu negócio é outro. E assim os dois continuaram vivendo; serviço, futebol, mulheres, bebidas e samba. Mas chegou o dia em que Firmino perdeu o emprego. Passaram-se dois anos e meio e nada de um serviço, só mesmo os bicos de segurança e servente de pedreiro. Já estava enjoado daquela vida monótona. Nada mais acontecia. Ele precisava de uma nova sensação, algo pra levantar a sua moral que, como dizem na comunidade: “Homem sem moral é um cachorro fuçando lixo na madrugada”. E era assim que Firmino se sentia. Começou a se isolar. Tanto que se afastou das mulheres e das amizades há muito cultivadas. Foi aí que o crime agiu. Firmino se envolveu com os traficantes. Esses deram a ele o que estava precisando: carinho, proteção e divertimento. Era agora um dos funcionários da boca-de-fumo que atendia no asfalto, onde os clientes eram universitários, filhos de gente famosa que vive na frente dos holofotes. Agora sim, voltara a viver. Não estava nem aí com o seu destino, só queria saber do agora: - O amanhã que se dane! – Dizia ele. Só que o crime não se resumia apenas naquilo. Por isso teve que partir para os assaltos. Num desses, ele matou um funcionário de uma mansão no centro do Rio. Aí veio a sua decadência. Começou a cheirar cocaína e a matar sem piedade. E depois de alguns meses sem se verem, Kauê e Firmino conversam no escadão do campo de futebol: - É por isso que tu sumiu né rapá? – Disse Kauê. - Ô Negão, bóra ali tomar uma breja. Caminharam calados até o boteco mais próximo. Lá beberam cerveja e jogaram três partidas de sinuca, todas ganhas por Kauê. - Porra Firmino, nem no taco você é o mesmo hein rapá... Conversaram durante toda a tarde. Kauê sempre dando conselhos e apontando outros caminhos que, ele mesmo sabia não chamar a atenção do amigo. Firmino levantou. Eram cinco horas da tarde e ele precisava ir. Tinha uma encomenda pra buscar lá no Morro do Sovaco. Pagou a conta e agradeceu a companhia do amigo, precisava desabafar com alguém e, mesmo tendo quebrado o pacto feito na adolescência, ele estava ali, disposto a ouvi-lo. Só ouvir mesmo, pois como Firmino dissera, agora é tarde, não tinha como abandonar o crime. Se saísse os caras matavam e se ficasse tinha de matar. Agora se bobear é “CC”, como dizem os veteranos do crime: “É caixão ou cadeia parceiro”. Kauê ficou vendo o amigo caminhar até desaparecer nos meios dos barracos que cercavam o morro. Uma lágrima escorreu pelo seu rosto. Já sabia o futuro do companheiro. Amaldiçoou o crime e às verdadeiras pessoas que ganham com ele. Respirou fundo e, fazendo um barulho estranho cuspiu uma bola verde de catarro. Saiu caminhando no lado oposto em que o amigo seguira. Estava pensando em ir na sua mãe de santo e pedir uma saída para a vida de Firmino. Os dias passavam normalmente na vida daquelas dezenas de famílias que habitavam o Morro do Culhão. Kauê via o amigo regularmente. Firmino não perdera o seu lado solidário, principalmente com Kauê que ele apelidara de Negão na sua adolescência. Sempre que eles se encontravam, Firmino oferecia ajuda: - E aí Negão, tá tudo certo mermo, num tá precisando de uma ajuda? Cê tá ligado que pode contar comigo em tudo né? Ás vezes explicava: - Você é meu irmão cara, tá ligado? Nós foi criado tudo junto nesse morro aí ó, conhecemos tudo aqui melhor do que ninguém. Se lembra quando nós ía roubar cana lá na plantação da família Mendes? No dia do jogo do Flamengo e Fluminense, Kauê subiu em cima da casa pra girar a antena, enquanto procurava a melhor posição, escutou a voz do Firmino: - Salve irmão, qué uma força aí? - Valeu cumpádi, pode deixar que eu ajeito sozinho, essas porras de televisão são foda. - Vou ti dar uma TV com parabólica no seu aniversário, pode anotar aí. - Olha que eu cobro hein? - Tu num vai nem precisar, antes mesmo de você cobrar ela já vai estar na sua mão. - E você, não vai assistir o jogo não? - Vou assistir lá no bar do Taquara... - Assiste aqui pô... - Num vai dar, vou assistir lá por que tenho que resolver uma fita também. - Então beleza. Firmino saiu. Kauê ajeitou a antena e desceu. O jogo começou: drible, xingos e vaias. Não saiu disso. Kauê escutou tiros, mas nem se preocupou, isso era normal, ainda mais em dia de jogo. Não sabia por quê mais lembrou como Firmino estava há poucos minutos; nervoso, agitado, inquieto... Fim do primeiro tempo: 0 x 0. Kauê aproveitou o intervalo para comprar cerveja. Quando ía subindo para o bar do Taquara, viu a namorada do Firmino correndo, chorando e gritando para ele: - Mataram Firmino, mataram Firmino... Kauê não quis entender: - Tá doida mulher, pára de brincadeira, não tem o que fazer não é? Ela se perdeu em gritos: - Num tô brincando não, mataram ele, mataram Firmino... - Aonde? - Lá no bar do Taquara... Ele correu pra conferir. Chegando lá viu o corpo do amigo todo ensangüentado. O comentário que ouviu foi: - Só no peito deram seis balaços. No velório Kauê lembra dos momentos em que estiveram juntos. Momentos iguais àqueles dias em que mijavam num pote, amarravam uma linha nele e colocavam do outro lado da viela. Quando alguém passava eles levantavam a linha e o líquido do pote voava certeiro na calça do infeliz. Lembrou também do dia em que perderam a virgindade, tinham 14 anos. Passaram a semana juntando alumínio. Com o dinheiro que receberam foram na Praça do Galo e convenceram uma prostituta. Neste momento Kauê dá um sorriso lembrando do amigo tirando um sarro da sua cara por que assim que a prostituta abaixou a calcinha ele gozou. Firmino sempre caçoava do amigo: - Tu é foda mermo aí, só foi a mulher mostrar aquele negócio cabeludo, que tu já se gozou... ah, ah, ah.... Kauê é despertado por uma mulher que chega desesperada e pede para segurar a criança. Ele percebe as semelhanças entre o bebê e Firmino. A mulher vai até o caixão, levanta o véu e começa a falar com o defunto: - Firmino, seu desgraçado, não me deixa... ingrato, olha aqui... sou eu, você não tem o direito de me deixar... Na medida em que gritava, as lágrimas escorriam dos seus olhos e caíam na face dura e fria de Firmino, defunto indiferente a tudo e a todos. Kauê não conseguiu segurar as lágrimas que brotaram de seus olhos.
Sacolinha, é escritor. Autor de Graduado em Marginalidade e 85 Letras e um Disparo! Atualmente ministra palestras em presídios, escolas e faculdades.