Eu só queria empinar pipa
O leitor não imagina a minha situação e nem em que circunstâncias eu estou narrando este texto. Mas vou contar.
Havia entrado de férias do serviço. Estava sem grana, ou melhor, até possuía dinheiro para uma boa viagem, mas tinha acabado de comprar um terreno junto com minha noiva, e tinha de economizar para a construção que começaríamos dali há dois meses. Então resolvi curtir meus trinta dias de uma forma diferente. Tinha minha bicicleta, era só limpá-la, passar um óleo na corrente e nos rolamentos das rodas, encher os pneus e sair por aí. Porém, havia um primo meu, de três anos de idade que adorava ficar comigo. E eu gostava pra cacete do moleque. Foi identificação mútua. Nos finais de semana eu pegava-o e saía de role. Íamos na doceria, chupávamos sorvete, jogávamos vídeo-game e tudo mais. Era um pedaço de gente que sempre alegrava-me com sua inteligência. Não me chamava pelo nome, mas sim pelo grau parentesco. Não saía o “R”, então era assim:
- Ô Pimo.
Que criança fantástica.
Bom, o fato é que percebi que ele adorava pipas. Vivia olhando para o céu e, quando via um avião ou pássaro, gritava:
- Ó a pipa, ó a pipa.
Uma vez passamos num campinho onde alguns meninos empinavam seus papagaios. Pedi para um deles deixar o meu primo pequeno segurar um pouco a linha que mantinha a pipa no ar.
Quando o Gabriel segurou na linha, senti que aquele foi o momento mais feliz da vida dele. Seus olhos brilharam, e ele nem conseguiu sorrir de tanta fascinação. Sem dúvida, ele sentiu o que toda criança sente num momento como esse; a pipa no ar balançando de um lado á outro, o vento soprando, a liberdade presa numa linha corrente, o sol, o céu azul...
Por essas e outras é que resolvi empinar pipa com ele durante todos os dias das minhas férias.
Pois bem.
E foi justo no sábado de manhã, primeiro dia das férias, que tudo aconteceu.
Estava mais feliz do que se tivesse ido para Fernão de Noronha. Parecia uma criança quando descobre uma nova brincadeira. Mesmo porque, a alegria era dupla, uma pelo meu primo, outra por mim, que há muito estava com vontade de fazer aquilo, relembrar a minha adolescência e sentir a alegria de cortar as pipas alheias, ato que, naquela época, me fez ganhar respeito onde morava.
Então, no sábado, às oito horas, peguei o carro e fui para o Jardim Beltono, onde havia um bazar que vendia carretéis de linhas, cortante, rabiola entre outros instrumentos para pipas.
Lá, comprei tudo o que precisava, inclusive pipas prontos, coisa que nunca fiz, já que quando empinava, eu mesmo gostava de fazer as minhas.
O Jardim Beltono, fica ao lado do meu bairro, na verdade são os dois bairros mais altos da cidade de Guarulhos. Portanto, teria que descer de onde fui comprar as coisas, para depois subir ao meu bairro. Aí que deu o ocorrido.
Optei pela rua mais íngrime, até hoje não sei por quê.
No final dela havia um muro que cercava um matagal, então tinha que virar para a esquerda ou á direita. A felicidade era tamanha que enquanto descia, aumentei o som e apoiei o braço esquerdo na porta do carro. Quando ia começar a diminuir a velocidade, faltavam apenas uns trinta metros para o fim da rua, pisei no freio e ele não correspondeu. Como estava relaxado, demorei para puxar o freio de mão e quando consegui, já era tarde.
Senti dois baques. O primeiro foi na batida, o segundo foi quando o muro caiu em cima do carro. Pra minha maior infelicidade estava consciente, por isso senti muita dor e, os gritos que vinham das pessoas que presenciaram o acidente me deixavam aterrorizados. Uma delas gritou:
- Não cheguem perto, tá vazando gasolina, vai explodir.
Depois disso desmaiei.
Quando acordei não consegui abrir os olhos. Só ouvia um choro bem baixinho e parecia que alguém segurava na minha mão. Não sabia ao certo o que estava acontecendo. Tentei falar, mas não consegui mover sequer os lábios.
De repente escutei um abrir e fechar de portas. A mão que segurava a minha, afrouxou. Então ouvi a seguinte frase:
- Olha mãe, seu filho entrou mesmo em estado de coma e, pelo atual quadro não temos uma previsão de quanto tempo ele ficará assim.
- Nãoooooooo. Meu filho tem muita coisa pra fazer, ele vai casar daqui á pouco, vai ter filhos e vai...
- Calma senhora, tenha calma. Não aja assim se não só vai piorar as coisas. O coma é imprevisível. Ele pode acordar agora, como pode acordar daqui há três, quatro anos.
Só ouvia o choro de minha mãe. Aos poucos fui lembrando de tudo o que havia acontecido. Comecei a chorar. Porém, tudo piorou, as lágrimas não saíam pra fora dos olhos, parecia que estava represando no meu coração, qual soro passeando pelas veias. Ouvia tudo, e vez ou outra sentia algo me tocando, não sabia ao certo se era minha mãe, o médico ou algum aparelho. E pensei se estava de fato em estado de coma. Reuni todas as forças para se mexer, falar ou agir de algum jeito. Nada consegui.
Perdi toda a vida que eu tinha pela frente. A minha noiva, acho que é ex, vem me ver pelo menos uma vez a cada três meses, se tiver arrumado outro homem, não a culpo por isso, ela não pode mesmo me esperar. Tenho saudades é dos dias com o meu primo Gabriel, como eu gosto daquele garoto. Hoje já tá com 8 anos, deve tá um homão.
Eu ainda não tenho certeza se estou em coma. Sempre ouvi dizer que quando uma pessoa está nesse estado, ela não ouve e nem sente nada, é como se estivesse morta. Em vários momentos sinto que estou chorando, pois minha mãe, quando vem me visitar, fica limpando o canto dos meus olhos.
O pior de tudo isso não é ficar aqui deitado, mas ficar revivendo em pensamento tudo o que eu vivi, todos os meus momentos. Só não consigo mais imaginar, parece que com o acidente eu perdi a imaginação. Tudo o que sei e que passa pela minha cabeça, vai até o momento da batida no muro e o grito de alguém dizendo que ia explodir. Então, fico lembrando minha adolescência na rua quinze em Jânio Feital na cidade de Monte Alto, interior de São Paulo. Adorava mesmo eram as tardes, pois na parte da manhã eu estudava. No período da tarde era que a vida acontecia de fato. As brincadeiras naquele tempo eram questões de época. Tinha a época de pipa, de jogar bolinha de gude, rodar pião. E quando não era época de nada, a gente é que fazia as brincadeiras, como o pique-esconde, as fogueiras e o rouba-bandeira.
Adorávamos ver passar a perua dos doces, que antes não tinha apenas a maçã do amor, tinha também suspiro, pipoca, algodão doce e pururucas. O que eu mais gostava eram as bolachas de doce de leite. Pegava as panelas e garrafas velhas e trocava por várias bolachas. Em cada pacote vinham três fileiras bem servidas. Entrava em casa e enchia o copo de café com leite, sentava na calçada e me acabava de tanto mastigá-las.
Outra coisa que eu sempre lembro era a época de pipas, que ocorria nas férias escolares de janeiro, julho e dezembro.
Nunca gastei dinheiro com isso, eu até ganhava. Roubava as linhas de outras pipas, catava os bambus dos vizinhos e depenava. Desenvolvia dezenas de varetas e com isso fazia as pipas que ora vendia, ora empinava. Rabiolas e cortantes era eu quem produzia também. E toda vez que alguém via eu colocando uma pipa no alto, esse alguém tratava logo de retirar a sua, pois eu não deixava por menos; cortava tudo.
É, pena que tudo agora são memórias, memórias como essas que você lê neste momento.
A vida é mesmo muito frágil. Já havia pensado nisso antes, mas não dava tanta atenção como agora. Penso que se tivesse evitado as férias, isso não teria acontecido. Aliás, vários detalhes me levaram a estar aqui.
Hoje, cinco anos depois, neste trocar de camas, entrar e sair de quartos, ainda lembro de todos os detalhes do acidente. Tudo isso apenas porque eu só queria empinar pipa.
Talvez nem passe pela cabeça do meu primo Gabriel que estou assim também por sua culpa. Coitado, nem tinha noção. Ele queria viver sua infância, eu também. Infelizmente não deu.
Sacolinha!